Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

EUROPA E ZEUS

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O Rapto de Europa (1562), de Tiziano Vecellio

PAUL VAN OSTAIJEN

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Paul Van Ostaijen

VERSO 6

Eu não posso colecionar selos
Eu não posso colecionar fotos de mulheres
Eu não posso colecionar namoros
nem sabedoria
eu já não posso nada mais
eu já não posso nada mais
Porque não apago a luz
e não vou pra cama
Eu quero provar
estar nu
pelado quem sabe sim púrpura gelada
e palidez
Não é assim o próprio princípio principiante
Eu não quero saber nada
eu não quero perguntar
porque
eu não me tornei um colecionador de selos
Eu começarei por dar meu fracasso
Eu começarei por dar minha falência
Eu me darei um pobre despedaço de terra
uma terra pisoteada
uma terra de urzes
uma cidade ocupada
Eu quero estar nu
e começar

Tradução de Philippe Humblé e Walter Costa

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

DEMÉTER


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Deméter procurando por Perséfone, de Howard David Johnson

JOSÉ LEZAMA LIMA


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José Lezama Lima


A ESCADA E A FORMIGA

À meia-noite
a formiga desce a escadaria do hotel.
Tenta seguir o alongamento de uma linha reta.
Às vezes pára: que labirintos resolverá?
Mas cada patamar a faz parar
de um modo surpreendente.
Anda pelo degrau como se procurasse
a encosta necessária para suas costas,
e então se precipita como se cantasse.
Está livre de todo compromisso,
mas acha de imprevisto um pedaço de asa
e corre pra alcançar a casa que desconhecemos.
Faz a folia em todas as escalas
e depois desce gabola até a outra
correndo como se estivesse numa praia.
Está feliz
por dominar a escada.
Sabe que terá sucesso em sua luta.
O sapato que pode machucá-la
passa raspando, mas lhe deixa
um pedaço de folha de tabaco,
uma pétala maculada,
o sal que acalora seus olhos dominantes.
É a senhora da escada
e passeou degrau por degrau
com a elegância de uma dama inglesa
que leva o lixo até a esquina,
ao latão verde
com a coroa inglesa
riscada pelos dois leopardos.

Tradução de Josely Vianna Baptista

domingo, 28 de dezembro de 2008

SEREIA

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Sereia, de Edward John Poynter

VASKO POPA


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Vasko Popa


DENTE DE LEÃO

Na beira do passeio
No fim do mundo
Olho amarelo da solidão

Cegos pés
Apertam-lhe o pescoço
No abdômen de pedra

Cotovelos subterrâneos
Empurram suas raízes
Para o húmus do céu

Pata canina ereta
Faz-lhe troça
Com o aguaceiro recozido

Contenta-o apenas
O olhar sem dono do passante
Que em sua coroa
Pernoita

E assim
A ponta de cigarro vai queimando
No lábio inferior da impotência
No fim do mundo

Tradução de Aleksandar Jovanovic

sábado, 27 de dezembro de 2008

JÚPITER, MERCÚRIO, FILEMON E BAUCIS

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Júpiter e Mercúrio hospedados por Filemon e Baucis (1678), de Johann Carl Loth

GEORG TRAKL


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Georg Trakl


AOS EMUDECIDOS

Oh, a loucura da cidade grande, quando ao entardecer
Árvores atrofiadas fitam inertes ao longo do muro negro
Que o espírito do mal observa com máscara prateada;
A luz, com açoite magnético, expulsa a noite pétrea.
Oh, o repicar perdido dos sinos da tarde.

A puta, em gélidos calafrios, pare uma criança morta.
A cólera de Deus chicoteia enfurecida a fronte do possesso,
Epidemia purpúrea, fome que despedaça olhos verdes.
Oh, o terrífico riso do ouro.

Mas quieta em caverna escura sangra muda a humanidade,
Constrói de duros metais a cabeça redentora.

Tradução de Cláudia Cavalcante

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

HÉRCULES

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Hércules em Repouso (1690), de Giovanni Gioseffo Dal Sole

FRANCIS PONGE

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Francis Ponge

O PEDAÇO DE CARNE

Cada pedaço de carne é uma espécie de fábrica, moinhos e lagares de sangue.
Tubulações, altos fornos, cubas vizinhos de martelos pilões, coxins de graxa.
O vapor jorra, fervente. Fogos sombrios ou claros encarnam-se.
Sarjetas a céu aberto carreiam escórias e fel.
E lentamente, à noite, à morte, todas essas coisas se resfriam.
Breve, se não a ferrugem, pelo menos outras reações químicas se produzem, liberando odores pestilenciais.

Tradução de Júlio Castañon Guimarães

BACO E ARIADNE

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Baco e Ariadne, de Tiziano Vecellio

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

WALT WHITMAN


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Walt Whitman, em gravura de Samuel Hollyer


CANTO DE MIM MESMO

Com a estrondosa música venho, com as minhas cornetas e tambores,
Não só toco marchas para os vencedores aclamados, também as toco para os conquistados e abatidos.

Ouviste dizer que foi bom vencer?
Também te digo que é bom perder, as batalhas perdem-se com o mesmo espírito com que se ganham.

Toco e volto a tocar pelos mortos,
Sopro por eles a minha mais alta e alegre melodia.

Vivas pelos vencidos!
E por aqueles cujos vasos de guerra afundaram no mar!
E pelos náufragos também!
E por todos os generais que perderam e por todos os vencidos heróis!
E pelos inumeráveis heróis desconhecidos iguais aos maiores heróis conhecidos!

Tradução de José Agostinho Baptista

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

DIANA, ENDIMIÃO E SÁTIRO

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Diana, Endimião e Sátiro, de Karl Brulloff

NUNO JÚDICE


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Nuno Júdice



METAFÍSICA

1


Não tenta nada de que se tivesse já esquecido;
o seu objectivo, agora, é organizar o presente.

2

Com as mãos, procura avaliar a qualidade da terra:
se as folhas lhe dão a consistência do ser vivo,
ou se a pedra que está por baixo, com os restos
fósseis da origem, rompe a sua unidade, e impede
o caminho às raízes.

3

Os olhos não sabem, ainda, que a visão profunda
os dispensa. Por dentro, o olhar implica a noite;
e é da fusão das formas no negro último do céu,
para além da superfície das estrelas e das nebulosas
que essa verdade brilha com a sua exacta eternidade.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

FEBO

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Febo em sua Carruagem, de Karl Brulloff

RUY BELO


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Ruy Belo


POEMA QUOTIDIANO

É tão depressa noite neste bairro
Nenhum outro porém senhor administrador
goza de tão eficiente serviço de sol
Ainda não há muito ele parecia
domiciliado e residente ao fim da rua
O senhor não calcula todo o dia
que festa de luz proporcionou a todos
Nunca vi e já tenho os meus anos
lavar a gente as mãos no sol como hoje
Donas de casa vieram encher de sol
cântaros alguidares e mais vasos domésticos
Nunca em tantos pés
assim humildemente brilhou
Orientou diz-se até os olhos das crianças
para a escola e pôs reflexos novos
nas míseras vidraças lá do fundo

Há quem diga que o sol foi longe demais
Algum dos pobres desta freguesia
apanhou-o na faca misturou-o no pão
Chegaram a tratá-lo por vizinho
Por este andar... Foi uma autêntica loucura
O astro-rei tornado acessível a todos
ele que ninguém habitualmente saudava
Sempre o mesmo indiferente
espectáculo de luz sobre os nossos cuidados
Íamos vínhamos entrávamos não víamos
aquela persistência rubra. Ousaria
alguém deixar um só daqueles raios
atravessar-lhe a vida iluminar-lhe as penas?

Mas hoje o sol
morreu como qualquer de nós
Ficou tão triste a gente destes sítios
Nunca foi tão depressa noite neste bairro

domingo, 21 de dezembro de 2008

SEREIAS

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Sereias (1883), de C.E. Boutibonne

JORGE FERNANDES

MEU POEMA PARNASIANO Nº 1

Que linda manhã parnasiana...
Que vontade de escrever versos metrificados
Contadinhos nos dedos...
Chamar de reserva todas as rimas
Em - or - para rimar com amor...
Todas as rimas em - ade - pra rimar com saudade...
Todas as rimas em - uz - pra rimar com Jesus, cruz, luz...

Enfeitar de flores de afeto um soneto ajustadinho
Todo trancado na sua chave de ouro...
Remexo os velhos livros...

“Ah! que saudades eu tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida...”

Zim... (ligaram um dínamo de milhares de cavalos
E as polias giram e as máquinas abafam o último verso da quadrinha...)

E lá me vem à mente o ritmo dos teares...
As grandes rimas dos padrões...
Os fios se cruzam... se unem pras grandes peças de linho...

- Óleos... fios... polcas... alavancas,
Apitos. Ponteadores. Carrités.
Zim traco! traco! traco! Malhos. Alicates. Ar comprimido.

Fuco! fuco! dos foles
Marcação de fardo pra exportação: marca M.B.C. - Fortaleza - M.F.M. - Mossoró - setas e contra marca -
Trepidação de decoviles.
“Ah! que saudades eu tenho.”

E me abafa o segundo verso de Casemiro
Um caminhão cheio de soldados que segue para o interior
A caçar bandidos.

Que linda manhã parnasiana!
Vou recitar “A vingança da porta”.
Os lindos e sangrentos versos do meu passado:
- “Era um hábito antigo que ele tinha..”
Pregões de gazeteiros: - Raide de San-Roman! Ribeiro de Barros
O grande momento da aviação mundial!
- Que poema forte o de San-Roman!
- Que poema batuta o de Ribeiro de Barros!
Todo misturado de nuvens, de óleo, gasolina,
De graxa, de gritos de bravos! de emoções!

Dem! dem! dem!: - o auto-socorro -
- Quem vem ali?
Um operário que quebrou uma perna de uma grande altura.
- Viva o grande operário! - Viva o grande herói do dia!
- Vivôôôôô!...

sábado, 20 de dezembro de 2008

SEREIA

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O Pescador e a Sereia (1857), Lord Frederick Leighton

LOUISE BOGAN


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Louise Bogan


PARA UM AMANTE DEFUNTO

O breu é sacudido a partir
Do claro, feito cabelos
Sobre um ombro.
Estou só,

Quatro anos mais velha;
Como as cadeiras e as paredes
Que certa vez vi luzindo,
Você a meu lado. Para eu acordar
Nunca desse jeito, não importa o que veio ou foi desfeito.

O caule cresce, o ano pulsa ao vento.
Maçãs chegam, e o mês em suas quedas.
A casca espalha, as raízes apertam.
Embora hoje seja a última,
E amanhã todas,
Não é da tua conta.

Que posso não lembrar,
Não é da conta.
Não vou estar contigo de novo.
O que sabemos, mesmo agora
Deve espalhar
E puir, e vazar
Como areia ao vento.

Morreste já faz tempo
E tens menos de desejar
A amada do amado;
E eu tenho vida—esse velho motivo
De esperar pelo que vem,
Largar o que é passado.

Tradução de Ruy Vasconcelos

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

ACTEON

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Morte de Acteon (1562), de Tiziano Vecellio

EDNA ST. VINCENT MILLAY


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Edna St. Vincent Millay


LAMENTO

ESCUTEM, crianças,
Seu pai está morto.
De seus velhos casacos
Eu lhes farei pequenas jaquetas;
Eu lhes farei pequenas calças
Das calças velhas dele.
Haverá nos bolsos dele
Coisas que ele costumava pôr lá:
Chaves e centavos
Cobertos com tabaco.
Dan terá os centavos
Para colocar na poupança;
Anne terá as chaves
Para fazer bastante barulho.
A vida deve continuar
E o morto ser esquecido;
A vida deve continuar
Embora bons homens morram.
Anne, coma seu café da manhã;
Dan, tome seu remédio.
A vida deve continuar
Eu apenas esqueço porquê.

Tradução de Marcilio Medeiros

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

ORFEU

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Orfeu (1894), de Károly Ferenczy

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

A FLOR E A NÁUSEA

Preso à minha classe e a algumas roupas,
Vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me'?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

ENÉIAS E HARPIAS

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Enéias e seus companheiros lutando contra as Harpias (1646-1647), de François Perrier

YVES BONNEFOY

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Yves Bonnefoy

O POÇO

Escutas a corrente a bater na parede
Quando o balde desce no poço que é a outra estrela.
Vésper às vezes, solitária estrela,
Fogo sem raio às vezes a esperar à alva
Que saiam o pastor e suas reses.

Mas sempre a água está presa, no fundo do poço.
A estrela fica sempre ali selada.
É possível ver sombras, sob os galhos.
São viajantes que de noite passam

Curvados, carregando às costas massa negra,
Hesitantes, diria, numa encruzilhada.
Uns parecem que esperam, outros se apagam
No faiscar que vai sem luz.

A viagem do homem, da mulher é longa, mais longa do que a vida,
É uma estrada no fim do caminho, um céu
Que se pensou ter visto brilhar entre as árvores.
Quando o balde toca a água, que o levanta,
É uma alegria, então a corrente o esmaga.

Tradução de Mário Laranjeira

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

CUPIDO E BACANTE


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Bacante dando Vinho para Cupido, de Feodor Bruni

ROBERT CREELEY


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Robert Creeley


AMOR

Há palavras voluptuosas
como a carne
na sua umidade,
seu calor.

Tangíveis, elas falam
das confirmações,
dos confortos,
de ser humano.

Não dizê-las
torna abstrato
todo desejo
e por fim sua morte.

Tradução de Virna Teixeira

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

DJANIRA

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O Rapto de Djanira (1690), de Giovanni Antonio Burrini

VICENTE HUIDOBRO

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Vicente Huidobro

O ESPELHO DE ÁGUA

Meu espelho, correndo pelas noites,
Torna-se arroio e foge do meu quarto.

Meu espelho, mais profundo que o orbe
Onde todos os cisnes se afogaram.

É um tanque verde na parede, e nele
Dorme tua desnudez ancorada.

Em suas ondas, sob uns céus sonâmbulos,
Os meus sonhos se afastam como barcos.

De pé na popa sempre me vereis cantando.
Uma rosa secreta intumesce em meu peito
E um rouxinol ébrio esvoaça em meu dedo.

Tradução de Anderson Braga Horta

domingo, 14 de dezembro de 2008

DÂNAE

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Dânae (1553-1554), de Tiziano Vecellio

JULIO CORTAZAR


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Julio Cortazar


OS AMANTES

Quem os vê andar pela cidade
se todos estão cegos?
Eles se tomam as mãos: algo fala
entre seus dedos, línguas doces
lambem a úmida palma, correm pelas falanges,
e acima a noite está cheia de olhos.

São os amantes, sua ilha flutua à deriva
rumo a mortes na relva, rumo a portos
que se abrem nos lençóis.
Tudo se desordena por entre eles,
tudo encontra seu signo escamoteado;
porém eles nem mesmo sabem
que enquanto rodam em sua amarga arena
há uma pausa na criação do nada
o tigre é um jardim que brinca.

Amanhece nos caminhões de lixo,
começam a sair os cegos,
o ministério abre suas portas.
Os amantes cansados se fitam e se tocam
uma vez mais antes de haurir o dia.

Já estão vestidos, já se vão pela rua.
E só então,
quando estão mortos, quando estão vestidos,
é que a cidade os recupera hipócrita
e lhes impõe os seus deveres quotidianos.

Tradução de José Jeronymo Rivera

sábado, 13 de dezembro de 2008

ORFEU

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Orfeu (afresco)

MIA COUTO

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Mia Couto

FUI SABENDO DE MIM

Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia

pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem só quando os perdia

fui ficando
por umbrais
aquém do passo
que nunca ousei

eu vi
a árvore morta
e soube que mentia

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

DIANA

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O Banho de Diana (1559), François Clouet

RABINDRANATH TAGORE


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Rabindranath Tagore


O CÉU E O NINHO

És ao mesmo tempo o céu e o ninho.

Meu belo amigo, aqui no ninho,
o teu amor prende a alma
com mil cores,
cores e músicas.

Chega a manhã,
trazendo na mão a cesta de oiro,
com a grinalda da formosura,
para coroar a terra em silêncio!

Chega a noite pelas veredas não andadas
dos prados solitários,
já abandonados pelos rebanhos!
Traz, na sua bilha de oiro,
a fresca bebida da paz,
recolhida
no mar ocidental do descanso.

Mas onde o céu infinito se abre,
para que a alma possa voar,
reina a branca claridade imaculada.
Ali não há dia nem noite,
nem forma, nem cor,
nem sequer nunca, nunca,
uma palavra!

Tradução de Manuel Simões

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

ORFEU, PLUTÃO E PERSÉFONE

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Orfeu, Plutão e Perséfone, de François Perrier

GOETHE


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Goethe


POEMAS SÃO COMO VITRAIS PINTADOS

Poemas são como vitrais pintados!
Se olharmos da praça para a igreja,
Tudo é escuro e sombrio;
E é assim que o Senhor Burguês os vê.
Ficará agastado? — Que lhe preste!...
E agastado fique toda a vida!

Mas — vamos! — vinde vós cá para dentro,
Saudai a sagrada capela!
De repente tudo é claro de cores:
Súbito brilham histórias e ornatos;
Sente-se um presságio neste esplendor nobre;
Isto, sim, que é pra vós, filhos de Deus!
Edificai-vos, regalai os olhos!

Tradução de Paulo Quintela

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

ENÉIAS E DIDO

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Enéias conta a Dido os Infortúnios de Tróia, de Pierre-Narcisse Guérin

AL BERTO

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Al Berto

A INVISIBILIDADE DE DEUS

dizem que em sua boca se realiza a flor
outros afirmam:
a sua invisibilidade é aparente
mas nunca toquei deus nesta escama de peixe
onde podemos compreender todos os oceanos
nunca tive a visão de sua bondosa mão

o certo
é que por vezes morremos magros até ao osso
sem amparo e sem deus
apenas um rosto muito belo surge etéreo
na vasta insônia que nos isolou do mundo
e sorri
dizendo que nos amou algumas vezes
mas não é o rosto de deus
nem o teu nem aquele outro
que durante anos permaneceu ausente
e o tempo revelou não ser o meu

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

ODISSEU E CALIPSO

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Caverna Fantástica com Odisseu e Calipso, de Jan Brueghel the Elder

E. E. CUMMINGS

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e. e. cummings

A FUNÇÃO DO AMOR É FABRICAR DESCONHECIMENTO

a função do amor é fabricar desconhecimento

(o conhecido não tem desejo; mas todo o amor é desejar)
embora se viva às avessas, o idêntico sufoque o uno
a verdade se confunda com o fato, os peixes se gabem de pescar

e os homens sejam apanhados pelos vermes (o amor pode não se importar
se o tempo troteia, a luz declina, os limites vergam
nem se maravilhar se um pensamento pesa como uma estrela
— o medo tem morte menor; e viverá menos quando a morte acabar)

que afortunados são os amantes (cujos seres se submetem
ao que esteja para ser descoberto)
cujo ignorante cada respirar se atreve a esconder
mais do que a mais fabulosa sabedoria teme ver

(que riem e choram) que sonham, criam e matam
enquanto o todo se move; e cada parte permanece quieta:

pode não ser sempre assim; e eu digo
que se os teus lábios,que amei, tocarem
os de outro, e os teus ternos fortes dedos aprisionarem
o seu coração,como o meu não há muito tempo;
se no rosto de outro o teu doce cabelo repousar
naquele silêncio que conheço, ou naquelas
grandiosas contorcidas palavras que, dizendo demasiado,
permanecem desamparadamente diante do espírito ausente;

se assim for,eu digo se assim for —
tu do meu coração, manda-me um recado;
para que possa ir até ele, e tomar as suas mãos,
dizendo, aceita toda a felicidade de mim.
E então voltarei o rosto, e ouvirei um pássaro
cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.

Tradução de Cecília Rego Pinheiro

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

ENÉIAS E SIBILA

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Enéias e Sibila no Submundo (1598), Jan Brueghel The Elder

ANA HATHERLY


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Ana Hatherly


A VERDADEIRA MÃO QUE O POETA ESTENDE...

A verdadeira mão que o poeta estende
não tem dedos:
é um gesto que se perde
no próprio ato de dar-se

O poeta desaparece
na verdade da sua ausência
dissolve-se no biombo da escrita

O poema é
a única
a verdadeira mão que o poeta estende

E quando o poema é bom
não te aperta a mão:
aperta-te a garganta

domingo, 7 de dezembro de 2008

SEREIA

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O Pescador e a Sereia, de Knut Ekwall

ALMADA NEGREIROS


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Almada Negreiros


CANÇÃO DA SAUDADE

Se eu fosse cego amava toda a gente.

Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu amo a minha irmã gêmea que nasceu sem vida, e amo-a a fantasia-la viva na minha idade.

Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives, dize onde moras, dize se vives ou se já nasceste.

Eu amo aquela mão branca dependurada da amurada da galé que partia em busca de outras galés perdidas em mares longíssimos.

Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por entre as gentes apressadas.

Eu amo aquelas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas.

Eu amo os cemitérios - as lajes são espessas vidraças transparentes, e eu vejo deitadas em leitos floridos virgens nuas, mulheres belas rindo-se para mim.

Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos. Eu amo a lua do lado que eu nunca vi.

Se eu fosse cego amava toda a gente.

sábado, 6 de dezembro de 2008

ORFEU E EURÍDICE

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Orfeu e Eurídice (1810), de Friedrich Rehberg

MÁRIO CHAMIE


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Mário Chamie


GALERIAS

Nas vastas galerias de sombras
passam os detritos. As ondas.

Um barco navega: fantasma
com ferrugem nos cascos
com caveiras no mastro
com salsugem nas quilhas.

Nas baixas galerias das vias,
o lodo concentra-se em pilhas,
um sapo deglute a mosca,
seu peixe de água salobra.

Nas sujas galerias do esgoto,
um crime carrega seu corpo,
um trem trafega sem rumo,
um lodo concentra seu sumo.

Nas vastas galerias de sombras,
o pesadelo pesado do povo
pesa seu sono de chumbo,
dorme em seu leito de escombros.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

SÍSIFO

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Sísifo, de Ticiano Vecellio

CESARE PAVESE

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Cesare Pavese

MANIA DA SOLIDÃO

Como um jantar frugal junto à clara janela,
Na sala já está escuro mas ainda se vê o céu.
Se saísse, as ruas tranqüilas deixar-me-iam
ao fim de pouco tempo em pleno campo.
Como e observo o céu — quem sabe quantas mulheres
estão a comer a esta hora — o meu corpo está tranqüilo;
o trabalho atordoa o meu corpo e também as mulheres.

Lá fora, depois do jantar, as estrelas virão tocar
a terra na ancha planura. As estrelas são vivas,
mas não valem estas cerejas que como sozinho.
Vejo o céu, mas sei que entre os tetos de ferrugem
brilha já alguma luz e que, por baixo, há ruídos.
Um grande gole e o meu corpo saboreia a vida
das árvores e dos rios e sente-se desprendido de tudo.
Basta um pouco de silêncio e as coisas imobilizam-se
no seu verdadeiro sítio, como o meu corpo imóvel.

Cada coisa está isolada ante os meus sentidos,
que a aceita impassível: um cicio de silêncio.
Cada coisa na escuridão posso sabê-la,
como sei que o meu sangue circula nas veias.
A planura é água que escorre entre a erva,
um jantar de todas as coisas. Cada planta e cada pedra
vivem imóveis. Escuto os alimentos e eles alimentam-me as veias
com todas as coisas que vivem nesta planura.

A noite importa pouco. O retângulo de céu
sussurra-me todos os fragores e uma estrela miúda
debate-se no vazio, longe dos alimentos,
das casas, distinta. Não se basta a si mesma
e precisa de muitas companheiras. Aqui no escuro, sozinho,
o meu corpo está tranqüilo e sente-se soberano.

Tradução de Carlos Leite

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

MORFEU E ÍRIS


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Morfeu e Íris (1811), de Pierre-Narcisse Guérin

MOACY CIRNE

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Moacy Cirne

POESIA

o potengi me naufraga:
eis-me devorado
por seus crepúsculos
seus mangues
suas mulheres
rosas dos ventos
e outros alentos
memória que me faz igapó
como se potengi eu fora o rio
barra nova ou seridó
entre a ribeira e a redinha
o itans e o poço de santana
a aurora e o espanto
noite sol extremoz e luar
nas madrugadas do amanhã
com as putas do wunder-bar
e as cores silenciosas da manhã