Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

sábado, 11 de abril de 2009

SILENOS E BACO


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História dos Silenos. Cena: Baco descobre o mel, de Piero di Cosimo

GOTTFRIED BENN


PALAVRA, FRASE

Palavra, frase - E as cifras falam
a vida vivida, súbito sentido,
o sol estaca, as esferas calam,
tudo se concentra a ela volvido.

Palavra - um brilho, um voo, um fogo,
um jacto de chamas, de estrelas um traço -
em redor do mundo e de mim há logo
o escuro medonho no vazio espaço.

Tradução de Vasco Graça Moura

sexta-feira, 10 de abril de 2009

PROSÉRPINA


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Prosérpina, de Dante Gabriel Rossetti

RAINER MARIA RILKE

DIA DE OUTONO

Senhor: é mais que tempo. O verão foi muito intenso.
Lança a tua sombra sobre os relógios de sol
e por sobre as pradarias desata os teus ventos.

Ordena às últimas frutas que fiquem maduras,
dá-lhes ainda mais uns dois dias de calor,
leva-as à completude e não deixes de pôr
no vinho pesado sua última doçura.

Quem não tem casa não a irá mais construir.
Quem está sozinho vai ficá-lo ainda mais.
Insone, há de ler, escrever cartas torrenciais
e correr as aléias num inquieto ir-e-vir
enquanto o vento carrega as folhas outonais.

Tradução de José Paulo Paes

quinta-feira, 9 de abril de 2009

VÊNUS E CUPIDO

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Vênus e Cupido, de Alessandro Allori
Musée Fabre, Montpellier

ELIZABETH BISHOP


O BANHO DE XAMPU

Os liquens - silenciosas explosões
nas pedras - crescem e engordam,
concêntricas, cinzentas concussões.
Têm um encontro marcado com
os halos ao redor da lua, embora
até o momento nada tenha mudado.
E como o céu há de nos dar guarida,
enquanto isso não se der,
você há de convir, amiga,
que se precipitou;
e eis no que dá. Porque o Tempo é,
mais que tudo, contemporizador.
No teu cabelo negro brilham estrelas
cadentes, arredias.
Para onde irão elas
tão cedo, resolutas?
- Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nessa bacia
amassada e brilhante como a lua.

Tradução de Ruy Vasconcelos

quarta-feira, 8 de abril de 2009

CARONTE


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Caronte transporta almas através do rio Estige, de Olexandr Lytovchenko

GOTTFRIED BENN


reprodução

Gottfried Benn


HOMEM E MULHER VISITAM O PAVILHÃO DOS CANCEROSOS

Homem:
aqui, estas fileiras são dos ventres cancerosos
e esta fileira dos seios cancerosos.
Leito por leito fétido. As enfermeiras se revezam de hora em hora.
Venha, pode levantar esta coberta.
Olhe, este amontoado de gordura e secreção pútrida,
já foi antes tudo para um homem
e significava também sussurro e pátria.
Venha, olhe para esta cicatriz no peito.
Está sentindo o relevo macio e branco?
Pode tocá-lo, a carne é macia e não dói.
Aqui, esta sangra como trinta corpos.
Ninguém tem tanto sangue assim.
Aqui, desta tiveram que tirar primeiro
uma criança de dentro do ventre carcinomatoso.
Deixam-nas dormirem. Dia e noite. -Às novas
se diz: aqui se dorme até ficar sã. -Só aos domingos
deixam-nas um pouco conscientes, para a visita.
Alimento é pouco ingerido. As costas
estão em chagas. Você vê as moscas. De vez em quando
a enfermeira as banha, como se tivesse lavando bancos.
Aqui, por cada leito o túmulo incha
Carne nivela-se com a terra. A energia se esvai.
Sangue escorre incessante. A cova chama.

Tradução: autor não identificado

terça-feira, 7 de abril de 2009

CUPIDO E PSIQUÊ


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Cupido e Psiquê, de Hugh Douglas Hamilton


WALLACE STEVENS


MANHÃ DE DOMINGO

1.

Complacência de penhoar, café
E laranjas ao sol das onze horas,
Verde indolência de uma cacatua
No tapete – isso ajuda a dissipar
O santo silêncio do sacrifício.
Mas ela sonha, e sente aproximar-se,
Escura e lenta, a catástrofe antiga,
Como o descer da noite sobre as águas.
O odor das frutas, o brilho de asas verdes
Virão talvez da procissão dos mortos,
Que atravessa as águas, silenciosa.
Aquietou-se para dar passagem
A seus pés sonhadores sobre os mares
A Terra Santa de sangue e sepulcro.

2.
Por que legar aos mortos o que é seu?
O que é o divino, se se manifesta
Somente em sonhos, sombras silenciosas?
Por que não encontrar prazer no sol,
No odor das frutas, brilho de asas verdes,
Em qualquer outro bálsamo terreno,
Tão caro quanto o próprio paraíso?
É nela que o divino há de viver:
Paixões chuvosas, cismas de nevascas,
Negras solidões, gozos incontidos
Quando a floresta se abre em flor; lufadas
De emoção em noites frescas de outono;
Toda dor e delícia; gordos ramos
De verão, galhos desnudos de inverno.
Estes, os ritmos próprios de sua alma.

3.
Nas nuvens nasceu Jove, o não-humano,
Que mãe não aleitou, e em relva fresca
Com passos divinais jamais pisou.
Caminhou entre nós, um rei absorto,
Magnífico, portento entre os humildes,
Até que sangue humano e virginal
Mesclou-se ao céu, anseio tão intenso
Que o viram os mais humildes, numa estrela.
Quem sabe nosso sangue ainda virá
A ser do paraíso? Será a terra
O único paraíso possível?
O céu ainda será nosso aliado,
Na dor e no cansaço, quase igual
Em glória ao próprio amor imorredouro,
Não mais um muro indiferente e azul.

4.
Diz ela: “Quando os pássaros questionam
Com cantos matinais a realidade
Dos campos enevoados, sou feliz;
Mas quando vão-se embora, e vai-se junto
Toda a paisagem, onde o paraíso?”.
Não há nenhuma negra profecia,
Não há quimera sepulcral tampouco,
Nem ilha melodiosa, habitada
Por espíritos, nem doce eldorado
No sul, nem palmeira em longínqua névoa
De outeiro no céu, que perdure mais
Do que o verdor da primavera, mais
Que a lembrança de uma manhã com pássaros,
Ou um desejo de tarde de verão
Consumada em asas de andorinhas.

5.
Diz ela: “Ainda assim, sei que preciso
De alguma alegria imperecível”.
A morte é a mãe do belo, e só a morte
Satisfaz nossos sonhos e desejos.
Ainda que ela espalhe as folhas secas
Do aniquilamento a nossa frente
Pelo caminho da dor, pelos muitos
Caminhos onde exultou a vitória,
Ou onde o amor sussurrou sua ternura,
Faz o salgueiro estremecer ao sol,
Para moças que antes sonhavam na relva
E agora se levantam. Faz rapazes
Juntarem maçãs e ameixas novas
Num prato esquecido. As moças provam,
E apaixonadas andam sobre folhas.

6.
Não haverá morte no paraíso?
Não cairá a fruta madura? Os galhos
Hão de ficar para sempre carregados
Naquele céu perfeito e imutável,
E ao mesmo tempo semelhante ao mundo
Mortal, com rios que buscam sempre mares
Que nunca hão de tocar com lábios mudos?
De que servem as maças nessas margens?
Por que adoçar com ameixas aquelas praias?
Que triste, lá brilharem nossas cores,
Tecer-se a seda de nossas manhãs,
Soarem nossos violões insípidos!
A morte é a mãe de todo o belo, mística,
E no seu seio cálido sonhamos
A mãe terrena, insone, a nossa espera.

7.
Homens ágeis e alegres, de mãos dadas,
Numa manhã de verão, em plena orgia,
Hão de cantar em devoção ao sol,
Não como deus, mas como um deus seria,
Nu entre eles, uma fonte bárbara.
E seu canto há de ser paradisíaco,
Saído do seu sangue para o céu;
E em seu canto entrará, em cada voz,
O lago que deleita o seu senhor,
As árvores seráficas, e os montes
Por muito tempo a repetir sua música.
Conhecerão a sagrada irmandade
De homens mortais e estivais manhãs.
E de onde vieram, e para onde irão,
O orvalho em seu pés indicará.

8.
Ela ouve, nas águas silenciosas,
Uma voz gritar: “O Santo Sepulcro
Não é alpendre onde repousem espíritos,
É o túmulo onde jazeu Jesus”.
Vivemos nesse velho caos de sol,
Ou velha servidão de noite e dia,
Ou solidão de ilha, livre e solta,
De águas silenciosas e implacáveis.
Cervos andam pelos montes; codornas
Assobiam, espontâneas; e nas matas
Amoras silvestres amadurecem.
E, no isolamento do azul,
Ao entardecer, pombas revoam a esmo,
Fazendo ondulações ambíguas, vagas,
Em direção à sombra, com suas asas.

Tradução de Paulo Henriques Britto

segunda-feira, 6 de abril de 2009

VERDADE E TEMPO

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Uma Alegoria da Verdade e Tempo (1584-5), de Annibale Carracci

ALEXANDRE O'NEILL


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Alexandre O'Neill


POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos

domingo, 5 de abril de 2009

DIONÍSIO



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Dionísio, bêbado, pende sobre um sátiro – gravura, de Marcantonio Raimondi


GUILHERME DE ALMEIDA

reprodução Guilherme de Almeida


FLOR DO ASFALTO

Flor do asfalto, encantada flor de seda,
sugestão de um crepúsculo de outono,
de uma folha que cai, tonta de sono,
riscando a solidão de uma alameda...

Trazes nos olhos a melancolia
das longas perspectivas paralelas,
das avenidas outonais, daquelas
ruas cheias de folhas amarelas
sob um silêncio de tapeçaria...

Em tua voz nervosa tumultua
essa voz de folhagens desbotadas,
quando choram ao longo das calçadas,
simétricas, iguais e abandonadas,
as árvores tristíssimas da rua!

Flor da cidade, em teu perfume existe
Qualquer coisa que lembra folhas mortas,
sombras de pôr de sol, árvores tortas,
pela rua calada em que recortas
tua silhueta extravagante e triste...

Flor de volúpia, flor de mocidade,
teu vulto, penetrante como um gume,
passa e, passando, como que resume
no olhar, na voz, no gesto e no perfume,
a vida singular desta cidade!