Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

DEDICAÇÃO A BACO



reprodução

Uma Dedicação a Baco, de Sir Lawrence Alma-Tadema


FREI CANECA


Frei Caneca

DÉCIMA


Se amor vive além da morte,
Eterno o meu há de ser;
Se amor dura só na vida,
Hei de amar-te até morrer.

Glosa

Que um peito, Analia, sensível,
Desses teus olhos ferido
Não te caia aos pés rendido,
Me parece um impossível.
Antes só tenho por crível
Que todo a ti se transporte,
E te preste amor tão forte,
Em teu serviço jucundo,
Que te ame além do mundo,
Se amor vive além da morte.

Por essa força atrativa,
Que em ti pôs a natureza,
Minha alma d'antes ilesa
Já de ti se vê cativa.
De amor n'uma chama viva
O peito sinto-me arder;
E se posso hoje prever
Os sucessos do futuro,
Entre os fogos de amor puro
Eterno o meu há de ser.

Mais forte que o gordiano,
É o nó que a ti me prende;
Fica certa, que o não fende
Da morte o ferro tirano;
Por que trazer-te-hei de ufano
No fundo d'alma esculpida,
Ou ao nada reduzida
Deve ser a minha essência;
Que nego a sobrevivência,
Se amor dura só na vida.

Em ambas suposições
Não és de mim separada;
Que me estais amalgamada
Da mente nas sensações:
E pois modificações
Só por si não podem ser,
Hás de eterna em mim viver,
Se eu tenho uma alma imortal;
Ou, se ela é material,
Hei de amar-te até morrer.

domingo, 19 de setembro de 2010

VULCANO




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A Forja de Vulcano, de Luca Giordano


TRISTAN CORBIÈRE



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Tristan Corbière



PAISAGEM MÁ

Praias de ossos. A onda estertora
Seus dobres, som a som, na areia.
Palude pálido. O luar devora
Grandes vermes – é a sua ceia.

Torpor de peste: somente a febre
Coze… O duende danado dorme.
A erva que fede vomita a lebre,
Bruxa medrosa que se some.

A lavadeira branca junta os
Trapos surrados dos defuntos,
Ao sol dos lobos… E os sapos. Ei-los,

Anões de vozes melancólicas,
Que envenenam com suas cólicas,
Os cogumelos, seus escabelos.

Tradução de Augusto de Campos

domingo, 29 de agosto de 2010

ZÉFIRO E FLORA



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Flora e Zéfiro, de William-Adolphe Bouguereau


CARLOS PENA FILHO



PARA FAZER UM SONETO

Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo, Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse;
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.

domingo, 8 de agosto de 2010

GANIMEDES E A ÁGUIA (ZEUS)

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O Rapto de Ganimedes, de Anton Domenico Gabbiani

SEBASTIÃO UCHOA LEITE



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Sebastião Uchoa Leite


ENIGMÓIDES

Espelho ao avesso
Sobre o abismo
Já sou mais isso
Do que eu mesmo

Reflexo antevisto
Do caos amórfico
Informe e vasto
Sonho malérico

BACANTE


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Bacante em uma pantera, de William-Adolphe Bouguereau

WISLAWA SZYMBORSKA


MUSEU

Há pratos, mas falta apetite
Há alianças, mas falta reciprocidade
pelo menos desde há 300 anos.
Há o leque - onde os rubores?
Há espadas - onde há ira?
E o alaúde nem tange à hora gris.
Por falta de eternidade juntaram
Dez mil coisas velhas.
Um guarda musgoso cochila docemente,
com os bigodes caindo sobre a vitrine.
Metais, barro, plumas de ave
Triunfam silenciosamente no tempo.
Apenas um alfinete da galhofeira do Egito ri zombeteiro.
A coroa deixou passar a cabeça.
A mão perdeu a luva.
A bota direita prevaleceu sobre a perna.
Quanto a mim, vivo, acreditem por favor.
Minha corrida com o vestido continua
E que resistência tem ele!
E como ele gostaria de sobreviver!

Tradução de Henrik Siewierski e José Santiago

terça-feira, 25 de maio de 2010

ORFEU



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Orfeu no Inferno, de Angelo Scetta


ALBERTO DA CUNHA MELO

QUESTIONÁRIO

Cai um silêncio de ondas longas
e sucessivas como a chuva.
E que silêncio será esse
que cai assim antes de mim?

Fauna marinha, gestos lentos
de anjos calados golpeando
um polvo em fúria que me espera
(sob os sonhos). Há quanto tempo?

Poucos amigos, tudo salvo,
ainda temos nossas raivas
e uma esperança ilimitada
nos setembros. Mas, até quando?

Caem livros silenciosos
das prateleiras: baixa a luz
morna e abundante sobre as capas.
Que foi feito de tanta noite?

A esperança nova se agarra
entre as barreiras e as ossadas
de nossos morros. E por que
morremos antes de salvá-la?

domingo, 25 de abril de 2010

LAMIA



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Lamia, de John William Waterhouse


RAINER MARIA RILKE

O SOLITÁRIO

Não: uma torre se erguerá do fundo
do coração e eu estarei à borda:
onde não há mais nada, ainda acorda
o indizível, a dor, de novo o mundo.

Ainda uma coisa, só, no imenso mar
das coisas, e uma luz depois do escuro,
um rosto extremo do desejo obscuro
exilado em um nunca-apaziguar,

ainda um rosto de pedra, que só sente
a gravidade interna, de tão denso:
as distâncias que o extinguem lentamente
tornam seu júbilo ainda mais intenso.

Tradução de Augusto de Campos

segunda-feira, 19 de abril de 2010

CLÍCIE



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Clície, de Lord Frederick Leighton


JORGE MEDAUAR

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Jorge Medauar


ESPERANÇA

Eu faço versos como que luta
De armas em punho... de armas nas mãos...
Forma ao meu lado, pois na labuta
Os companheiros são como irmãos.

Meu verso é aço. Fornalha ardente...
Peito ou bigorna... Braço ou trator...
Corre entre o povo. Salgado e quente,
Cai gota a gota, por que é suor.

E nestes versos de luta ousada
Deixo a esperança que sempre tive
Nas tintas rubras da madrugada.

- Eu faço versos como quem vive.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

DANAIDE

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Danaide, de Auguste Rodin

MAURO MOTA

PASTORAL

Não disse de onde veio. Apenas veio
quase flutuante pela madrugada.
A flauta e um zelo musical em cada
ovelha e em todas do seu pastoreio.

Toca. (Para o rebanho?) A sua toada
interrompe-se às vezes pelo meio.
Dela não quer somente o vale cheio:
quer levá-la mais longe. Quando nada

houver mais dos cordeiros e dos pastos,
do viço matinal, dos brancos rastos
de lã, dos guizos de uma ovelha incauta,

fique a lembrança do pastor fugace,
que foi pastor só para que ficasse
nas colinas a música da flauta.

sexta-feira, 12 de março de 2010

GRAÇAS



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A Natureza e as Graças, de Peter Paul Rubens


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


ÁPORO

Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.

Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?

Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:

em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

DEUSES DO OLIMPO



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Banquete dos Deuses (1550), de Frans Floris


AUGUSTO DOS ANJOS


PSICOLOGIA DE UM VENCIDO

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

domingo, 7 de fevereiro de 2010

FILHAS DE LEUCIPO


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Rapto das Filhas de Leucipo (detalhe), de Peter Paul Rubens


EDNA ST. VINCENT MILLAY


QUE LÁBIOS JÁ BEIJEI, ESQUECI QUANDO

Que lábios já beijei, esqueci quando
e porquê, e que braços sob a minha
cabeça até ser dia; a chuva alinha
os fantasmas que rufam, suspirando,
no espelho, respostas esperando,
e no meu peito uma dor calma aninha
rapazes que não lembro e a mim sozinha
à meia-noite já não vêm chorando.
No inverno a solitária árvore assim
nem sabe que aves foram uma a uma,
sabe os ramos mais mudos: nem sei quais
amores vindos, idos, eu resuma,
só sei que o verão cantou em mim
breve momento e em mim não canta mais.

Tradução de Vasco Graça Moura