
Minerva, História e Tempo (1700), de Francesco Solimena.
The National Gallery, Londres
Jorge Luis Borges
ARTE POÉTICA
Olhar o rio que é de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.
Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme a nossa carne é essa morte
De cada noite, que se chama sono.
Ver no dia ou até no ano um símbolo
Quer dos dias do homem quer dos anos,
Converter a perseguição dos anos
Numa música, um rumor e um símbolo,
Ver na morte o sono, no ocaso
Um triste ouro, assim é a poesia
Que é imortal e pobre. A poesia
Volta como a aurora e o ocaso
Às vezes certas tardes uma cara
Olha-nos do mais fundo dum espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.
Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao divisar a Ítaca
Verde e humilde. A arte é essa Ítaca
De verde eternidade e não prodígios.
Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal dum mesmo
Heraclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.
Tradução de Ruy Belo
Hinos à noite
Parte II
Por que a manhã deve sempre retornar? O despotismo do dia nunca terá fim? A atividade profana consome a visita angélica da noite. Nunca chegará o dia em que o sacrifício oculto do Amor arderá eternamente? Veio o tempo da Luz; porém, o domínio da Noite é eterno e ilimitado. A duração do sono é eterna. Sono Sagrado, servo dedicado da Noite, não se preencha de júbilo no trabalho mundano do dia. Os tolos julgam-te mal, nada conhecendo do sono exceto a sombra que lanças piedosamente sobre nós no crepúsculo da noite real. Eles não te sentem no fluxo dourado das videiras, no óleo mágico da árvore das amêndoas, e no suco marrom do pomo da papoula. Eles não sabem que és tu quem assombra o seio da bela dama, e transforma em Céu a sua nobreza; jamais suspeitam que és tu, guardiã do Céu, quem envia a eles as antigas histórias, mensageira silenciosa dos segredos infinitos, portadora da chave para a morada dos abençoados.
Tradução de Orlando Marcondes Ferreira Neto
As Musas Clio, Euterpe e Tália, de Eustache Le Sueur.
Museu do Louvre, Paris
Giacomo Leopardi
Batalha entre os centauros e os lápites (detalhe), de Piero di Cosimo.
National Gallery, London.