Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

FORTUNA



reprodução

A Fortuna, de Guido Reni


FERNANDO PESSOA


NA NOITE TERRIVEL

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incômoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.
Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver...

Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.

O que falhei deveras não tem esperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos,

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

HERA E ARGOS



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Hera e Argos, de Peter Paul Rubens


MARIA TERESA HORTA

ABRIGO

Abrigo-me de ti
de mim não sei
há dias em que fujo
e que me evado

há horas em que a raiva
não sequei
nem a inveja rasguei
ou a desfaço

Há dias em que nego
e outros onde nasço

há dias só de fogo
e outros tão rasgados

Aqueles onde habito com tantos
dias vagos.

domingo, 29 de novembro de 2009

PERSEU E ANDRÔMEDA



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Perseu e Andrômeda, de Lord Frederick Leighton


AUGUSTO DOS ANJOS

VERSOS ÍNTIMOS

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

sábado, 21 de novembro de 2009

CENTAURO


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Centauro arrebatando um jovem, de Auguste Rodin

JOÃO CABRAL DE MELO NETO

PSICANÁLISE DO AÇÚCAR

O açúcar cristal, ou açúcar de usina,
mostra a mais instável das brancuras:
quem do Recife sabe direito o quanto,
e o pouco desse quanto, que ela dura.
Sabe o mínimo do pouco que o cristal
se estabiliza cristal sobre o açúcar,
por cima do fundo antigo, de mascavo,
do mascavo barrento que se incuba;
e sabe que tudo pode romper o mínimo
em que o cristal é capaz de censura:
pois o tal fundo mascavo logo aflora
quer inverno ou verão mele o açúcar.

*

Só os bangüês que ainda purgam ainda
o açúcar bruto com barro, de mistura;
a usina já não o purga: da infância,
não de depois de adulto, ela o educa;
em enfermarias, com vácuos e turbinas,
em mãos de metal de gente indústria,
a usina o leva a sublimar em cristal
o pardo do xarope: não o purga, cura.
Mas como a cana se cria ainda hoje,
em mãos de barro de gente agricultura,
o barrento da pré-infância logo aflora
quer inverno ou verão mele o açúcar.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

GLOBO



reprodução

Os quatro cantos do globo, de Peter Paul Rubens


PEDRO KILKERRY

O MURO

Movendo os pés doirados, lentamente,
Horas brancas lá vão, de amor e rosas
As impalpáveis formas, no ar, cheirosas...
Sombras, sombras que são da alma doente!

E eu, magro, espio... e um muro, magro, em frente
Abrindo à tarde as órbitas musgosas
— Vazias? Menos do que misteriosas —
Pestaneja, estremece... O muro sente!

E que cheiro que sai dos nervos dele,
Embora o caio roído, cor de brasa,
E lhe doa talvez aquela pele!

Mas um prazer ao sofrimento casa...
Pois o ramo em que o vento à dor lhe impele
É onde a volúpia está de uma asa e outra asa...

sábado, 17 de outubro de 2009

GALATÉIA



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O triunfo de Galatéia, de Raphael


ZILA MAMEDE

ELEGIA

Não retornei aos caminhos
que me trouxeram do mar.
Sinto-me brancos desertos
onde as dunas me abrasando
tarjam meus olhos de sal
dum pranto nunca chorado,
dum terror que nunca vi.

Vivo hoje areias ardentes
sonhando praias perdidas
com levianos marujos
brincando de se afogar,
com rochedos e enseadas
sentindo afagos do mar.

Tudo perdi no retorno,
tudo ficou lá no mar:
arrancaram-me das ondas
onde nasci a vagar,
desmancharam meus caminhos
- os inventados no mar:
depois, secaram meus braços
para eu não mais velejar.

Meus pensamentos de espumas,
meus peixes e meu luar,
de tudo fui despojada
(até das fúrias do mar)
porque já não sou areias,
areias soltas de mar.
Transformaram-me em desertos,
ouço meus dedos gritando
vejo-me rouca de sede
das leves águas do mar.

Nem descubro mais caminhos,
já nem sei também remar:
morreram meus marinheiros,
minha alma, deixei no mar.

Pudessem meus olhos vagos
ser ostras, rochas, luar,
ficariam como as algas
morando sempre no mar.

Que amargura em ser desertos!
Meu rosto a queimar, queimar,
Meus olhos se desmanchando
- roubados foram do mar.
No infinito me consumo:
acaba-se o pensamento.
No navegante que fui
sinto a vida se calar.

Meus antigos horizontes,
navios meus destroçados,
meus mares de navegar,
levai-me desses desertos,
deitai-me nas ondas mansas,
plantai meu corpo no mar.
Lá, viverei como as brisas.
Lá, serei pura como o ar.
Nunca serei nessas terras,
Que só existo no mar.

sábado, 10 de outubro de 2009

PSIQUÊ



reprodução

A galeria de Psiquê, de Raphael


SAFO


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Safo (representada em mosaico)


TRÊS FRAGMENTOS DE SAFO


vem, lira divina, e me responde;
encontra, tu mesma, tua própria voz.

Tradução de Joaquim Brasil Fontes


como a maçã mais doce enrubescendo-se
no alto do mais alto ramo, a sós,
que os colhedores esqueceram lá –
não, esqueceram não: nenhum pôde alcançar.

Tradução de Álvaro A. Antunes


é Eros outra vez
que, fera má, me acossa:
de-fel-de-mel serpente impiedosa
envenenando de tremor as minhas coxas.

Tradução de Álvaro A. Antunes

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

TERRA E ÁGUA

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A união da Terra e da Água, de Peter Paul Rubens

CELINA DE HOLANDA


OS AMIGOS

Os amigos chegam, ponho a mesa.
Branca, estendida a esperança.
Às sombras
rogo o ensejo do contraste
equilíbrio de opostos
necessário
ao claro, para a imagem.
Ó, a tristeza
de sermos o que somos e não
como queriam que fôssemos os que
amamos.

Os amigos chegam,
venham de onde vierem, ponho a mesa.

sábado, 26 de setembro de 2009

CUPIDO


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A punição de Cupido, de Sebastiano Ricci

CECÍLIA MEIRELES


MADRUGADA NO CAMPO

Com que doçura esta brisa penteia
a verde seda fina do arrozal -
Nem cílios, nem pluma, nem lume de lânguida
lua, nem o suspiro do cristal.

Com que doçura a transparente aurora
tece na fina seda do arrozal
aéreos desenhos de orvalho! Nem lágrima,
nem pérola, nem íris de cristal...

Com que doçura as borboletas brancas
prendem os fios verdes do arrozal
com seus leves laços! Nem dedos, nem pétalas,
nem frio aroma de anis em cristal

Com que doçura o pássaro imprevisto
de longe tomba no verde arrozal!
- Caído céu, flor azul, estrela última:
súbito sussurro e eco de cristal.

domingo, 20 de setembro de 2009

ARIADNE


reprodução

Ariadne, de John William Waterhouse

JOÃO CABRAL DE MELO NETO

PSICANÁLISE DO AÇÚCAR

O açúcar cristal, ou açúcar de usina,
mostra a mais instável das brancuras:
quem do Recife sabe direito o quanto,
e o pouco desse quanto, que ela dura.
Sabe o mínimo do pouco que o cristal
se estabiliza cristal sobre o açúcar,
por cima do fundo antigo, de mascavo,
do mascavo barrento que se incuba;
e sabe que tudo pode romper o mínimo
em que o cristal é capaz de censura:
pois o tal fundo mascavo logo aflora
quer inverno ou verão mele o açúcar.

*

Só os bangüês que ainda purgam ainda
o açúcar bruto com barro, de mistura;
a usina já não o purga: da infância,
não de depois de adulto, ela o educa;
em enfermarias, com vácuos e turbinas,
em mãos de metal de gente indústria,
a usina o leva a sublimar em cristal
o pardo do xarope: não o purga, cura.
Mas como a cana se cria ainda hoje,
em mãos de barro de gente agricultura,
o barrento da pré-infância logo aflora
quer inverno ou verão mele o açúcar.

domingo, 13 de setembro de 2009

ANTÍGONA


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Antígona, de Lord Frederick Leighton

ISIDORE DUCASSE


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Isidore Ducasse

CANTOS DE MALDOROR (fragmento)

Ó polvo do olhar de seda: tu, cuja alma é inseparável da minha; tu, o mais belo dos habitantes do globo terrestre e que comandas um serralho de quatrocentas ventosas; tu, em quem residem nobremente, como em sua habitação natural, por comum acordo de indestrutível laço, a doce virtude comunicativa e as graças divinas – porque não estás tu comigo, com o teu ventre de mercúrio encostado ao meu peito de alumínio, sentados os dois nalgum rochedo da costa, para contemplarmos este espetáculo que eu adoro!

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

BACANTE

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Bacante, de Lord Frederick Leighton

ANAÏS NIN


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Anaïs Nin


A CASA DO INCESTO (excerto)

Nasci sem pele. Um dia sonhei que estava nu num jardim e que cuidadosa e completamente me tiravam a pele como a um fruto. Não ficou nem um resto de pele no meu corpo. Foi toda mas toda retirada com cuidado e só depois me disseram para andar, viver e correr. A princípio movimentei-me devagar, o jardim era tremendamente macio e eu sentia de uma precisa o jardim-doçura, não na superfície do corpo, mas atravessando-me o ar doce e os perfumes, como agulhas penetrando todos os meus poros em sangue. Todos os poros estavam abertos e respiravam calor, doçura e cheiros. O corpo totalmente invadido, penetrado, reagindo, a mais pequena célula e poros vivos respirando e tremendo com prazer. Gritei de dor. Corri. E ao correr o vento chicoteava-me e as vozes das pessoas eram chicotes dirigidos a mim. Ser tocado! Acaso sabem vocês o que é ser tocado por um ser humano?

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

ANDRÔMACA

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Andrômaca no cativeiro, de Lord Frederick Leighton

GREGORY CORSO

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Gregory Corso

POETAS PEDINDO CARONA À BEIRA DA ESTRADA

Claro que eu tentei lhe dizer
mas ele virou a cara
sem sequer desculpar-se
Eu lhe disse que o céu persegue
o sol
E ele sorriu e disse:
"Sim e daí?" Eu me sentia como um demônio
outra vez
Por isso disse: "Mas o oceano persegue
os peixes."
Desta vez ele riu
e disse: "Suponho que
os morangos foram empurrados para uma montanha."
Depois disso vi que a
guerra estava declarada...
Então lutamos:
Ele disse: "A carroça das maçãs como um
anjo numa vassoura
racha & lasca
velhos tamancos holandeses."
Eu disse: "O relâmpago vai cair no velho carvalho
e libertar a fumaça!"
Ele disse: "Rua louca sem nome."
Eu disse: "Assassino careca! Assassino careca! Assassino careca."
Ele disse, perdendo a cabeça de uma vez por todas,
"Fogões! Gasolina! Divã"
Eu, sorrindo, disse apenas:
"Sei que Deus voltaria sua cabeça
caso eu me sentasse calado e pensasse."
Acabamos evaporando
com ódio do ar!

Tradução de Eduardo Bueno

sábado, 8 de agosto de 2009

ACTEA

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Actea, a ninfa da praia, de Lord Frederick Leighton

MYRIAM COELI


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Myriam Coeli


MEDIDA

Para João Lins Caldas

Na geometria de um caixão
não cabe espanto ou alarido
nem o tempo com seus vestidos,
vazio, fábula, condição.
Tolhida é a fala e a permanência.
Vida, hieróglifo decifrado.
Peito enredado em tédio ou em grito
não cabe em barco de um caixão.

Não cabe sede, fonte e fome
concretas arestas de espadas
lacerando da vida o signo
em verdades acrescentadas.
Garras da fúria de um minuto
não cravam rictus nem desgosto
nem dialogam faces prismáticas
com configurações propostas.
Só cabe em crepes de um caixão
Pontas de adjetivas sombras.

Não há ginetes cavalgando
no avesso das pupilas. E aves
súbitas em cantos no abismo
de sonhos. Ou olhos vigilantes.
Não há mãos, gestos delirantes,
coração tirso ou pés em préstito,
nem periscópio ou concisão,
cilício e muros submersos.
Prata, ouro, coisas corrosivas
tempo artesão e alma em volutas
sobram em móvel de um caixão.

Não há sega de sangue ou cuspe,
não há canto, mapa ou disfarce.
Dados e dardos não se arriscam,
nem se acendem em febres, brasas,
os desejos desconformados.
Nem pelo medo é devorado
que se tem em limite exato
nas alegorias do tato.
Não há labirintos seguros
onde a angústia é subterrânea
hiena que as vísceras come.
(Já nos suportes do caixão
começam clarins de silêncio).

Em horizontes de um caixão
linha exata repousa a treva
e o corpo – desusada pedra
de antracite, de pó e nada
levitando em logro. Insuflada
Caixão entre círios e réquiens,
de grifos negros, feras mortas
e em tralhas de rendas tortas
velado em catafalco amém.

Mundo que se desmistifica
no surdo baque de um caixão.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

PÁRIS

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A decisão de Páris, de Antoine Watteau

ALEXANDRE HERCULANO


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Alexandre Herculano


A VITÓRIA E A PIEDADE

I


Eu nunca fiz soar meus pobres cantos
Nos paços dos senhores!
Eu jamais consagrei hino mentido
Da terra dos opressores.
Mal haja o trovador que vai sentar-se
À porta do abastado,
O qual com ouro paga a própria infâmia,
Louvor que foi comprado.
Desonra àquele, que ao poder e ao ouro
Prostitui o alaúde!
Deus à poesia deu por alvo a pátria,
Deu a glória e a virtude.
Feliz ou infeliz, triste ou contente,
Livre o poeta seja,
E em hino isento a inspiração transforme
Que na sua alma adeja.

domingo, 26 de julho de 2009

IFIGÊNIA


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Ifigênia (1862), de Anselm Feuerbach

JULES LAFORGUE


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Jules Laforgue


LITANIAS DOS QUARTOS
CRESCENTES DA LUA


Lua sublime,
Nos ilumine!

É o medalhão
De Endimião,

Astro de argila
Que tudo exila,

Caixão milenar
De Salambô lunar,

Cais etéreo
Do alto mistério,

Madona e miss,
Diana-Artemis,

Santa vigia
De nossa orgia,

Jetaturá
Do bacará,

Dama tão pálida
Em nossa praça,

Vago perfume
De vaga-lume,

Rosácea calma
Do último salmo,

Olho-de-gata
Que nos resgata,

Seja o auxílio
A nosso delírio!

Seja o edredão
Do Grande Perdão!

Tradução de Cláudio Daniel

sábado, 25 de julho de 2009

DAFNEFORIA - Festa em honra de Apolo


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Dafneforia, de Lord Frederick Leighton

WISLAWA SZYMBORSKA


CÉU

Era preciso comecar daí: céu.
Janela sem encosto, sem moldura, sem vidraça.
Abertura e nada mais, porém muito bem aberta.
Não preciso aguardar a noite amena:
nem levantar a cabeça
para perscrutar o céu.
Tenho céu atrás de mim, sob as mãos
e debaixo das pálpebras.
Estou enredada de céu
e isto me exalta.
Nem as montanhas mais altas
Estão mais próximas do céu
que os vales mais profundos.
Nao há mais céu num lugar
do que em outro.
A nuvem está atada ao céu
indiferente como o túmulo.
A toupeira é tão feliz
quanto a coruja que abre as asas.
O objeto que cai no precipício
cai do céu no céu.
Partes poeirentas, léquidas, montanhosas,
passageiras e queimadas do céu, migalhas do céu,
brisas de céu e montes.
O céu é onipresente
até nas trevas sob a pele.
Devoro o céu, rejeito o céu.
Estou com armadilhas na armadilha,
com o habitante instalado,
com o abraço abraçado,
com a pergunta presente na resposta.
A divisão entre céu e terra
não foi pensada de forma adequada
a respeito desta unidade.
Permite até que se sobreviva
no endereço mais exato,
que pode ser achado mais depressa
se me procurarem.
Os meus sinais característicos são
o arrebatamento e o desespero.

Tradução de Aleksandar Jovanovic

domingo, 12 de julho de 2009

ASCLÉPIO


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Asclépio

CECÍLIA MEIRELES


ENCOMENDA

Desejo uma fotografia
como esta — o senhor vê? — como esta:
em que para sempre me ria
com um vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.

Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia...
Não... Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia.

sábado, 4 de julho de 2009

NAUSÍCAA

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Nausícaa, de Lord Frederick Leighton

ROBERT FROST


FOGO E GELO

Alguns dizem que o mundo terminará com fogo.
Outros, que será com gelo.
Pelo que eu conheço do desejo,
Acredito que será com fogo.
Mas se duas vezes tivesse que ser morto,
Conheço o ódio o bastante
Para dizer que na destruição o gelo
É possante
E seria perfeito.

Tradução de Paulo Azevedo Chaves

segunda-feira, 29 de junho de 2009

HÉRCULES, MORTE E ALCESTE

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Hércules lutando com a Morte pelo corpo de Alceste, de Lord Frederick Leighton

MARCELINE DESBORDES-VALMORE


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Marceline Desbordes-Valmore


AS ROSAS DE SAADI

Esta manhã eu quis levar-te rosas,
Mas tantas eu tinha na cintura presas
Que os nós cerrados não as puderam conter.

Os nós rebentaram. E elas levadas
Pelo vento no mar foram tragadas.
As rosas perdidas eu não consegui rever;

As águas ficaram vermelhas, como inflamadas.
Esta noite minhas vestes ainda estão perfumadas.
Aspira em mim a lembrança de as trazer.

Tradução de Paulo Azevedo Chaves

terça-feira, 23 de junho de 2009

JUNO



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Juno Ardente, de Lord Frederick Leighton


MANUEL BANDEIRA


PROFUNDAMENTE

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci.

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

PSIQUÊ


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Psiquê entrando no jardim de Cupido, de John William Waterhouse

CARL SANDBURG

reprodução
Carl Sandburg
CAPIM

Empinhai bem alto os cadáveres em Austerlitz e Waterloo,
Enterrai-os bem fundo e deixai-me trabalhar -
Eu sou o capim; a tudo eu encubro.
E empilha-os bem alto em Gettysburg
E empilha-os bem alto em Ypres e Verdun.
Enterrai-os bem fundo e deixai-me trabalhar.
Dois, dez anos e os passageiros perguntam ao motorista:
Onde nos encontramos agora?
Como se chama este lugar?
Eu sou o capim,
Deixai-me trabalhar.

Tradução de Paulo Azevedo Chaves

terça-feira, 9 de junho de 2009

NINFA

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Ninfa, de Jules Joseph Lefebvre

FAGUNDES VARELA


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Fagundes Varela



NÉVOAS

Nas horas tardias que a noite desmaia
Que rolam na praia mil vagas azuis,
E a lua cercada de pálida chama
Nos mares derrama seu pranto de luz,

Eu vi entre os flocos de névoas imensas,
Que em grutas extensas se elevam no ar,
Um corpo de fada — sereno, dormindo,
Tranqüila sorrindo num brando sonhar.

Na forma de neve — puríssima e nua —
Um raio da lua de manso batia,
E assim reclinada no túrbido leito
Seu pálido peito de amores tremia.

Oh! filha das névoas! das veigas viçosas,
Das verdes, cheirosas roseiras do céu,
Acaso rolaste tão bela dormindo,
E dormes, sorrindo, das nuvens no véu?

O orvalho das noites congela-te a fronte,
As orlas do monte se escondem nas brumas,
E queda repousas num mar de neblina,
Qual pérola fina no leito de espumas!

Nas nuas espáduas, dos astros dormentes
— Tão frio — não sentes o pranto filtrar?
E as asas, de prata do gênio das noites
Em tíbios açoites a trança agitar?

Ai! vem, que nas nuvens te mata o desejo
De um férvido beijo gozares em vão!...
Os astros sem alma se cansam de olhar-te,
Nem podem amar-te, nem dizem paixão!

E as auras passavam — e as névoas tremiam
— E os gênios corriam — no espaço a cantar,
Mas ela dormia tão pura e divina
Qual pálida ondina nas águas do mar!

Imagem formosa das nuvens da Ilíria,
— Brilhante Valquíria — das brumas do Norte,
Não ouves ao menos do bardo os clamores,
Envolto em vapores — mais fria que a morte!

Oh! vem; vem, minh'alma! teu rosto gelado,
Teu seio molhado de orvalho brilhante,
Eu quero aquecê-los no peito incendido,
— Contar-te ao ouvido paixão delirante!...

Assim eu clamava tristonho e pendido,
Ouvindo o gemido da onda na praia,
Na hora em que fogem as névoas sombrias
– Nas horas tardias que a noite desmaia.

E as brisas da aurora ligeiras corriam.
No leito batiam da fada divina...
Sumiram-se as brumas do vento à bafagem,
E a pálida imagem desfez-se em — neblina!

segunda-feira, 8 de junho de 2009

DIANA

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Diana e suas companheiras, de Jan Vermeer Van Delft

GEORG TRAKL


DE PROFUNDIS

Há um restolhal, onde cai uma chuva negra.
Há uma árvore marrom, ali solitária.
Há um vento sibilante, que rodeia cabanas vazias.
Como é triste o entardecer

Passando pela aldeia
A terna órfã recolhe ainda raras espigas.
Seus olhos arregalam-se redondos e dourados no crepúsculo,
E seu colo espera o noivo divino.

Na volta
Os pastores acharam o doce corpo
Apodrecido no espinheiro.

Sou uma sombra distante de lugarejos escuros.
O silêncio de Deus
Bebi na fonte do bosque.

Na minha testa pisa metal frio
Aranhas procuram meu coração.
Há uma luz, que se apaga na minha boca.

À noite encontrei-me num pântano
Pleno de lixo e pó das estrelas.
Na avelãzeira
Soaram de novo anjos cristalinos.

Tradução de Claudia Cavalcanti

domingo, 7 de junho de 2009

CLOÉ

reprodução
Cloé, de Jules Joseph Lefebvre

JUNQUEIRA FREIRE


reprodução

Junqueira Freire


LOUCO

(HORA DE DELÍRIO)

Não, não é louco. O espírito somente
É que quebrou-lhe um elo da matéria.
Pensa melhor que vós, pensa mais livre,
Aproxima-se mais à essência etérea.

Achou pequeno o cérebro que o tinha:
Suas idéias não cabiam nele;
Seu corpo é que lutou contra sua alma,
E nessa luta foi vencido aquele,

Foi uma repulsão de dois contrários:
Foi um duelo, na verdade, insano:
Foi um choque de agentes poderosos:
Foi o divino a combater com o humano.

Agora está mais livre. Algum atilho
Soltou-se-lhe o nó da inteligência;
Quebrou-se o anel dessa prisão de carne,
Entrou agora em sua própria essência.

Agora é mais espírito que corpo:
Agora é mais um ente lá de cima;
É mais, é mais que um homem vão de barro:
É um anjo de Deus, que Deus anima.

Agora, sim — o espírito mais livre
Pode subir às regiões supernas:
Pode, ao descer, anunciar aos homens
As palavras de Deus, também eternas.

E vós, almas terrenas, que a matéria
Os sufocou ou reduziu a pouco,
Não lhe entendeis, por isso, as frases santas.
E zombando o chamais, portanto: - um louco!

Não, não é louco. O espírito somente
É que quebrou-lhe um elo da matéria.
Pensa melhor que vós, pensa mais livre.
Aproxima-se mais à essência etérea.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

AQUILES E PRÍAMO


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Aquiles e Príamo, de Jules Bastien-Lepage

MANUEL BATISTA CEPELOS

OS VAGABUNDOS

Ei-los sem diretriz, macilentos e rotos,
Perlustrando a extensão dessas ruas e vielas...
Vê-se-lhes no semblante o ar dos velhos pilotos,
Cansados de vencer procelas e procelas...

Expostos ao ladrar de cães e de garotos,
Sofrem caladamente injúrias e mazelas;
E, á noite, vão sonhar, na pedra dos esgotos,
Ao frigido lençol da lua e das estrelas...


E, desde que amanhece, apressados e argutos,
Vagam pela cidade, em pleno reboliço;
Ou ficam a cismar, nos jardins e viadutos...

E, enquanto as ambições se chocam frente a frente,
Os Vagabundos, bem alheios a tudo isso,
Vão passando, a fumar, filosoficamente...

domingo, 31 de maio de 2009

JASÃO E MEDÉIA

reprodução
Jasão e Medeia, de John William Waterhouse

CASIMIRO DE ABREU


wikimedia

Casimiro de Abreu


CANÇÃO DO EXÍLIO

Se eu tenho de morrer na flor dos anos
Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

Meu Deus, eu sinto e tu bem vês que eu morro
Respirando este ar;
Faz que eu viva, Senhor! dá-me de novo
Os gozos do meu lar!

O país estrangeiro mais belezas
Do que a pátria não tem;
E este mundo não vale um só dos beijos
Tão doces duma mãe!

Dá-me os sítios gentis onde eu brincava
Lá na quadra infantil;
Dá que eu veja uma vez o céu da pátria,
O céu do meu Brasil!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos
Meu Deus! não seja já!
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

Quero ver esse céu da minha terra
Tão lindo e tão azul!
E a nuvem cor-de-rosa que passava
Correndo lá do sul!

Quero dormir à sombra dos coqueiros,
As folhas por dossel;
E ver se apanho a borboleta branca,
Que voa no vergel!

Quero sentar-me à beira do riacho
Das tardes ao cair,
E sozinho cismando no crepúsculo
Os sonhos do porvir!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos,
Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
A voz do sabiá!

Quero morrer cercado dos perfumes
Dum clima tropical,
E sentir, expirando, as harmonias
Do meu berço natal!

Minha campa será entre as mangueiras,
Banhada do luar,
E eu contente dormirei tranqüilo
À sombra do meu lar!

As cachoeiras chorarão sentidas
Porque cedo morri,
E eu sonho no sepulcro os meus amores
Na terra onde nasci!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos,
Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

sábado, 30 de maio de 2009

BACO E CUPIDO

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Baco bêbado e Cupido, de Jean Leon Gerome

FRIEDRICH HÖLDERLIN


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Friedrich Hölderlin


A CANÇÃO DE HYPERION

Oh santos génios! Vós caminhais,
lá por cima, em luz, sobre terra suave.
Brilhantes deuses etéreos
Tocam-vos levemente,
Qual os dedos da artista
nas cordas santas

Sem destino, como a criança
Adormecida, os anjos respiram;
Castamente guardado
Em discretos botões,
O espírito floresce-lhes,
Eterno,
E os santos olhos
Vêem em silenciosa
E eterna claridade.

Nós, porém, fomos condenados a errar,
Sem descanso, p’la terra fora.
Ao acaso, de uma
Hora para a outra,
Os homens sofredores
Somem-se e caiem,
Como a água atirada de
Recife para recife,
Ano após ano, na incerteza

Tradução de Luís Costa

sexta-feira, 29 de maio de 2009

FLORA


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Flora, de John William Waterhouse

SILVA ALVARENGA


MADRIGAIS

I


Neste áspero rochedo,
A quem imitas, Glaura sempre dura,
Gravo o triste segredo
Dum amor extremoso e sem ventura.
Os Faunos da espessura
Com sentimento agreste
Aqui meu nome cubram de cipreste;
Ornem o teu as Ninfas amorosas
De goivos, de jasmins, lírios e rosas.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

PSIQUÊ

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Psiquê abrindo a caixa dourada, de John William Waterhouse

CACASO


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Cacaso


poética

Alguma palavra,
este cavalo que me vestia como um cetro,
algum vômito tardio modela o verso.

Certa forma se conhece nas infinitas,
a fauna guerreira, a lua fria
encrustada na fria atenção.

Onde era nuvem
sabemos a geometria da alma, a vontade
consumida em pó e devaneio.
E recuamos sempre, petrificados,
com a metafísica
nos dentes: o feto
fixado
entre a náusea e o lençol.

Meu poema me contempla horrorizado.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

FLORA E ZÉFIRO

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Flora e Zéfiro, de John William Waterhouse

LECONTE DE LISLE


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Leconte de Lisle


PAISAGEM POLAR

Do mar a imensa escuma o frio aglomerou-a,
e um mundo morto fez, sem luz, sem vegetais,
e onde do gelo duro as agulhas fatais
rasgam do fusco céu a perpétua garoa;

em avalanches rola a neve, e se amontoa...
Tudo estéril; e atroz confusão de infernais
brados, imprecações, roncos, soluços e ais,
que aos seus clarins de ferro o vento arranca, troa.

Nivoso, hirto, glacial, das brumas através,
o branco e antigo deus, pai das primevas raças,
inteiriçado jaz, do promontório aos pés...

E, a babar de volúpia, em meio à cerração,
os ursos - colossais e formidandas massas -
trôpegos, cá e lá bambaleando vão...

Tradução de Raimundo Correia

terça-feira, 26 de maio de 2009

PÁRIS

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O Julgamento de Páris, de Michele Rocca

TORQUATO NETO


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Torquato Neto


COGITO

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

CIRCE

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Circe, de John William Waterhouse

ALGERNON CHARLES SWINBURNE


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Algernon Charles Swinburne


UMA DESPEDIDA

Vamos, canções, ela não ouviria
Sigamos sem temor por nossa via.
Silêncio, o tempo de cantar passou,
Passou já tudo o que se quis um dia.
Ela não quer o amor que nos marcou.
Fôssemos a voz de um anjo em melodia
E ela não ouviria.
Vamos partir. Ela não saberia.
Vamos ao mar, como é da ventania,
Soprando areia, espuma, que fazer?
Nada a fazer, que a vida é mesmo fria,
E o mundo é lágrimas e é padecer.
Mostrássemos a dor que em nós havia
E ela não saberia.
Para casa! Ela não sofreria.
Demos de amor, sonhos demais, e dias
E flores mortas, frutos condenados,
Dizendo:”Ceifa, como a fantasia”
E nada resta: foi tudo ceifado.
Visse em nós, que plantamos, a agonia,
E ela não sofreria.
Ao descanso! Ela não nos amaria
Nem vai ouvir a nossa litania
Nem ver que amar caminha em dor, no mundo.
Vamos daqui, cessemos a porfia.
O amor é mar amargo, hostil, profundo;
Pudesse o céu dar flores - sim, daria,
E ela não amaria.
Desistamos! Ela nem cuidaria.
Dourasse a estrela os mares que alumia,
Dourasse o mar a vaga que estremece
E a flor da lua a flor da espuma espia,
E as ondas todas sobre nós trouxesse,
Lábios cerrasse, a mão deixasse fria,
E ela nem cuidaria
Vamos canções, ela não nos veria.
Uma vez mais, cantemos, todavia.
Talvez ela relembre o que dissemos
E queira ainda ouvir nossa elegia,
Mas nós, nós já partimos. Nem viemos!
Quem vê sabe da dor que me agonia,
Mas ela não veria.

Tradução de Jorge Wanderley