Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

sábado, 20 de dezembro de 2008

SEREIA

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O Pescador e a Sereia (1857), Lord Frederick Leighton

LOUISE BOGAN


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Louise Bogan


PARA UM AMANTE DEFUNTO

O breu é sacudido a partir
Do claro, feito cabelos
Sobre um ombro.
Estou só,

Quatro anos mais velha;
Como as cadeiras e as paredes
Que certa vez vi luzindo,
Você a meu lado. Para eu acordar
Nunca desse jeito, não importa o que veio ou foi desfeito.

O caule cresce, o ano pulsa ao vento.
Maçãs chegam, e o mês em suas quedas.
A casca espalha, as raízes apertam.
Embora hoje seja a última,
E amanhã todas,
Não é da tua conta.

Que posso não lembrar,
Não é da conta.
Não vou estar contigo de novo.
O que sabemos, mesmo agora
Deve espalhar
E puir, e vazar
Como areia ao vento.

Morreste já faz tempo
E tens menos de desejar
A amada do amado;
E eu tenho vida—esse velho motivo
De esperar pelo que vem,
Largar o que é passado.

Tradução de Ruy Vasconcelos

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

ACTEON

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Morte de Acteon (1562), de Tiziano Vecellio

EDNA ST. VINCENT MILLAY


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Edna St. Vincent Millay


LAMENTO

ESCUTEM, crianças,
Seu pai está morto.
De seus velhos casacos
Eu lhes farei pequenas jaquetas;
Eu lhes farei pequenas calças
Das calças velhas dele.
Haverá nos bolsos dele
Coisas que ele costumava pôr lá:
Chaves e centavos
Cobertos com tabaco.
Dan terá os centavos
Para colocar na poupança;
Anne terá as chaves
Para fazer bastante barulho.
A vida deve continuar
E o morto ser esquecido;
A vida deve continuar
Embora bons homens morram.
Anne, coma seu café da manhã;
Dan, tome seu remédio.
A vida deve continuar
Eu apenas esqueço porquê.

Tradução de Marcilio Medeiros

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

ORFEU

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Orfeu (1894), de Károly Ferenczy

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

A FLOR E A NÁUSEA

Preso à minha classe e a algumas roupas,
Vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me'?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

ENÉIAS E HARPIAS

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Enéias e seus companheiros lutando contra as Harpias (1646-1647), de François Perrier

YVES BONNEFOY

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Yves Bonnefoy

O POÇO

Escutas a corrente a bater na parede
Quando o balde desce no poço que é a outra estrela.
Vésper às vezes, solitária estrela,
Fogo sem raio às vezes a esperar à alva
Que saiam o pastor e suas reses.

Mas sempre a água está presa, no fundo do poço.
A estrela fica sempre ali selada.
É possível ver sombras, sob os galhos.
São viajantes que de noite passam

Curvados, carregando às costas massa negra,
Hesitantes, diria, numa encruzilhada.
Uns parecem que esperam, outros se apagam
No faiscar que vai sem luz.

A viagem do homem, da mulher é longa, mais longa do que a vida,
É uma estrada no fim do caminho, um céu
Que se pensou ter visto brilhar entre as árvores.
Quando o balde toca a água, que o levanta,
É uma alegria, então a corrente o esmaga.

Tradução de Mário Laranjeira

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

CUPIDO E BACANTE


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Bacante dando Vinho para Cupido, de Feodor Bruni

ROBERT CREELEY


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Robert Creeley


AMOR

Há palavras voluptuosas
como a carne
na sua umidade,
seu calor.

Tangíveis, elas falam
das confirmações,
dos confortos,
de ser humano.

Não dizê-las
torna abstrato
todo desejo
e por fim sua morte.

Tradução de Virna Teixeira

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

DJANIRA

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O Rapto de Djanira (1690), de Giovanni Antonio Burrini

VICENTE HUIDOBRO

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Vicente Huidobro

O ESPELHO DE ÁGUA

Meu espelho, correndo pelas noites,
Torna-se arroio e foge do meu quarto.

Meu espelho, mais profundo que o orbe
Onde todos os cisnes se afogaram.

É um tanque verde na parede, e nele
Dorme tua desnudez ancorada.

Em suas ondas, sob uns céus sonâmbulos,
Os meus sonhos se afastam como barcos.

De pé na popa sempre me vereis cantando.
Uma rosa secreta intumesce em meu peito
E um rouxinol ébrio esvoaça em meu dedo.

Tradução de Anderson Braga Horta

domingo, 14 de dezembro de 2008

DÂNAE

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Dânae (1553-1554), de Tiziano Vecellio

JULIO CORTAZAR


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Julio Cortazar


OS AMANTES

Quem os vê andar pela cidade
se todos estão cegos?
Eles se tomam as mãos: algo fala
entre seus dedos, línguas doces
lambem a úmida palma, correm pelas falanges,
e acima a noite está cheia de olhos.

São os amantes, sua ilha flutua à deriva
rumo a mortes na relva, rumo a portos
que se abrem nos lençóis.
Tudo se desordena por entre eles,
tudo encontra seu signo escamoteado;
porém eles nem mesmo sabem
que enquanto rodam em sua amarga arena
há uma pausa na criação do nada
o tigre é um jardim que brinca.

Amanhece nos caminhões de lixo,
começam a sair os cegos,
o ministério abre suas portas.
Os amantes cansados se fitam e se tocam
uma vez mais antes de haurir o dia.

Já estão vestidos, já se vão pela rua.
E só então,
quando estão mortos, quando estão vestidos,
é que a cidade os recupera hipócrita
e lhes impõe os seus deveres quotidianos.

Tradução de José Jeronymo Rivera