Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

sábado, 18 de outubro de 2008

HILAS E AS NINFAS


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Hilas e as Ninfas (1896), de John William Waterhouse

MIGUEL DE CERVANTES


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Miguel de Cervantes

DAMÓN

Se o áspero furor do mar irado
por longo tempo em seu rigor durasse,
mal se podia achar quem entregasse
sua fraca nave ao pélago alterado.

Não permanece sempre num estado
o mal ou bem, que são esquiva face;
porque, se o bem fugisse e o mal ficasse,
teria o mundo à confusão voltado.

A noite ao dia, e o calor ao frio,
a flor ao fruto vão em seguimento,
formando de contrários igual tela.

A sujeição se troca em senhorio,
Em prazer o pesar, a glória em vento,
che per tal variar natura è bella.

Tradução de José Bento

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

ÁRION


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Árion sobre um cavalo-marinho (1855), de William-Adolphe Bouguereau

MÁRIO FAUSTINO


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Mário Faustino



O MUNDO QUE VENCI DEU-ME UM AMOR

O mundo que eu venci deu-me um amor,
Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.
O mundo que venci deu-me um amor
Alado galopando em céus irados,
Por cima de qualquer muro de credo.
Por cima de qualquer fosso de sexo.
O mundo que venci deu-me um amor
Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que força as portas dos infernos,
Amor que galga o cume ao paraíso.
Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória...

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

AQUILES E QUÍRON


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A Educação de Aquiles pelo Centauro Quíron, de Jean-Baptiste Regnault

GLÓRIA DE SANT'ANA


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Glória de Sant'ana



BAIRRO NEGRO

As pequenas casas maticadas
erguem-se de longe (de séculos, de antigas datas)
contra o mar e as ondas e as algas.

Como remotas conchas embaciadas
caídas de uma súbita maré alta (lúcida e predestinada)
entre o areal e as ondulantes palmas.

As pequenas casas cúbicas e caladas
onde os problemas são primários e as janelas fechadas
e os tectos de macúti...

(Quem sofre dentro das rústicas portas não aplainadas?
Ou se encosta chorando às trémulas arestas
projectadas entre ângulos de acaso?

Que mar indeterminado e abstracto
se reflecte num olhar ou num gesto marcado
por um ignoto hábito?)

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

MERCÚRIO E APOLO


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Mercúrio e Apolo, de Francesco Albani


OCTAVIO PAZ


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Octavio Paz


CONVERSAR

Em um poema leio:
Conversar é divino.
Mas os deuses não falam:
fazem, desfazem mundos
enquanto os homens falam.
Os deuses, sem palavras,
jogam jogos terríveis.

O espírito baixa
e desata as línguas
mas não diz palavra:
diz luz. A linguagem
pelo deus acesa,
é uma profecia
de chamas e um desplume
de sílabas queimadas:
cinza sem sentido.

A palavra do homem
é filha da morte.
Falamos porque somos
mortais: as palavras
não são signos, são anos.
Ao dizer o que dizem
os nomes que dizemos
dizem tempo: nos dizem,
somos nomes do tempo.
Conversar é humano.

Tradução: Antônio Moura

terça-feira, 14 de outubro de 2008

SELENE E ENDIMIÃO

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Selene e Endimião, de Sebastiano Ricci

CALDERÓN DE LA BARCA


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Calderón de La Barca


A VIDA É SONHO

Monológo de Segismundo


É certo; então reprimamos
esta fera condição,
esta fúria, esta ambição,
pois pode ser que sonhemos;
e o faremos, pois estamos
em mundo tão singular
que o viver é só sonhar
e a vida ao fim nos imponha
que o homem que vive, sonha
o que é, até despertar.
Sonha o rei que é rei, e segue
com esse engano mandando,
resolvendo e governando.
E os aplausos que recebe,
Vazios, no vento escreve;
e em cinzas a sua sorte
a morte talha de um corte.
E há quem queira reinar
vendo que há de despertar
no negro sonho da morte?
Sonha o rico sua riqueza
que trabalhos lhe oferece;
sonha o pobre que padece
sua miséria e pobreza;
sonha o que o triunfo preza,
sonha o que luta e pretende,
sonha o que agrava e ofende
e no mundo, em conclusão,
todos sonham o que são,
no entanto ninguém entende.
Eu sonho que estou aqui
de correntes carregado
e sonhei que em outro estado
mais lisonjeiro me vi.
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho
e os sonhos, sonhos são.

Tradução: Renata Pallotini

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

MARTE E VÊNUS


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Marte desarmado por Vênus (1824), de Jacques-Louis David

JOHN DONNE


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John Donne


O ÊXTASE

Onde, qual almofada sôbre o leito,
A areia grávida inchou para apoiar
A inclinada cabeça da violeta,
Nós nos sentamos, olhar contra olhar.

Nossas mãos duramente cimentadas
No firme bálsamo que delas vem,
Nossas vistas trançadas e tecendo
Os olhos em um duplo filamento;

Enxertar mão em mão é até agora
Nossa única forma de atadura
E modelar nos olhos as figuras
A nossa única propagação.

Como entre dois exércitos iguais,
Na incerteza, o Acaso se suspende,
Nossas almas (dos corpos apartadas
Por antecipação) entre ambos pendem.

E enquanto alma com alma negocia,
Estátuas sepulcrais ali quedamos
Todo o dia na mesma posição,
Sem mínima palavra, todo o dia.

Se alguém - pelo amor tão refinado
Que entendesse das almas a linguagem,
E por virtude desse amor tornado
Só pensamento - a elas se chegasse,

Pudera (sem saber que alma falava
Pois ambas eram uma só palavras),
Nova sublimação tomar do instante
E retornar mais puro do que antes.

Nosso Êxtase - dizemos - nos dá nexo
E nos mostra do amor o objetivo,
Vemos agora que não foi o sexo,
Vemos que não soubemos o motivo.

Mas que assim como as almas são misturas
Ignoradas, o amor reamalgama
A misturada alma de quem ama,
Compondo duas numa e uma em duas.

Transplanta a violeta solitária:
A força, a cor, a forma, tudo o que era
Até aqui degenerado e raro
Ora se multiplica e regenera.

Pois quando o amor assim uma na outra
Interanimou duas almas,
A alma melhor que dessas duas brota
A magra solidão derrota,

E nós que somos essa alma jovem,
Nossa composição já conhecemos
Por isto: os átomos de que nascemos
São almas que não mais se movem.

Mas que distância e distração as nossas!
Aos corpos não convém fazermos guerra:
Não sendo nós, não convém fazermos guerra:
Inteligências, eles as esferas.

Ao contrário, devemos ser-lhes gratas
Por nos (a nós) haverem atraído,
Emprestando-nos forças e sentidos.
Escória, não, mas liga que nos ata.

A influência dos céus em nós atua
Só depois de se ter impresso no ar.
Também é lei de amor que alma não flua
Em alma sem os corpos transpassar.

Como o sangue trabalha para dar
Espíritos, que às almas são conformes,
Pois tais dedos carecem de apertar
Esse invisível nó que nos faz homens,

Assim as almas dos amantes devem
Descer às afeições e às faculdades
Que os sentidos atingem e percebem,
Senão um Príncipe jaz aprisionado.

Aos corpos, finalmente, retornemos,
Descortinando o amor a toda a gente;
Os mistérios do amor, a alma os sente,
Porém o corpo é as páginas que lemos.

Se alguém - amante como nós - tiver
Esse diálogo a um ouvido a ambos,
Que observe ainda e não verá qualquer
Mudança quando aos corpos nos mudamos.

Tradução: Augusto de Campos

domingo, 12 de outubro de 2008

MINERVA E AS MUSAS


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Minerva entre as Musas, de Hendrick van Balen the Elder

ARLINDO BARBEITOS

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Arlindo Barbeitos


AMANHECEU QUEM DIRIA

amanheceu
quem diria
que inda agora hoje era ontem
e que cacos ao longe não iam ser olhos de bicho
quem diria
que patos-bravos mergulhando não eram jacarés
e que lagartos azuis iam a quatro patas
quem diria
que bosta de elefante não eram pedras
e que guerrilheiros antigos iam pisar a sua mina
quem diria
que o professor cismando não era surdo
e que os alunos não iam falar a sua língua
quem diria
que a moça do Muié
que inda agora era virgem logo já o não é
quem diria
que inda agora hoje era ontem
amanheceu