Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

sábado, 28 de março de 2009

AQUILES E QUÍRON



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Aquiles aprendiz de Quíron, de Donato Creti


WILLIAM CARLOS WILLIAMS

O DIREITO DE PASSAGEM

Transitando com a idéia posta
em nada deste mundo

a não ser o direito de passagem
eu desfruto a estrada por

efeito de lei —
vi

um homem de idade
que sorriu e desviou o olhar

para o norte, além de uma casa -
uma mulher de azul

que estava rindo e se
inclinando para a frente

a fim de olhar o rosto meio
voltado do homem

e um menino de uns oito anos que
olhava para o meio da

barriga do homem
para uma corrente de relógio —

A suprema importância
deste inominado espetáculo

fez com que eu acelerasse
ao passar por eles sem palavra —

Por que me importaria o rumo?
e lá fui rodando sobre as

quatro rodas do meu carro
pela estrada molhada até

que vi uma moça com uma perna sobre
o parapeito de um balcão.

Tradução de José Paulo Paes

sexta-feira, 27 de março de 2009

BACO E ARIADNE

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O Triunfo de Baco e Ariadne (1600), de Annibale Carracci

HART CRANE


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Hart Crane

PROÉMIO: À PONTE DE BROOKLYN

Aurora após aurora, as gaivotas, de asas enregeladas
Pelo ondulante poiso, mergulham e rodopiam,
Derramando brancos anéis de tumulto, exibindo a sua liberdade
Nas alturas, sobre as águas agrilhoadas da baía.

Numa curva imaculada, as aves abandonam os nossos olhos,
Semelhantes ao fantasma de um veleiro que cruza
As facturas, os orçamentos e os balancetes a arquivar;
- A jornada termina e os ascensores libertam-nos do dia...

Sonho com as grandes salas de cinema, a magia panorâmica,
As multidões debruçadas sobre uma qualquer cena cintilante,
Uma profecia nunca revelada, incessantemente revista,
No mesmo écran, pelos espectadores da sessão seguinte.

E Tu, ó Ponte, caminhas sobre o porto, em passos de prata,
Como se o sol te imitasse, sem contudo copiar
O movimento do teu brilhante rasto, -
A tua livre originalidade assim preservada.

Fugido de alguma vigia de metro, cave ou sótão,
Um lunático precipita-se para os teus parapeitos,
Oscila por um instante, a camisa berrante, enfunada,
Um gracejo tomba dos transeuntes espantados.

Em Wall Street, dos andaimes até à rua, o meio-dia escorre
Como um rasgão luminoso no acetileno celeste;
Toda a tarde, os guindastes giram entre as nuvens...
Enquanto os teus cabos sorvem a calma do oceano.

A recompensa que ofereces
É tão obscura quanto o paraíso bíblico;
Aqueles que resgatas do anonimato, o tempo jamais destruirá.
Só Tu és senhora da indulgência e do perdão.

Ó harpa e altar em fúria fundidos,
(Como pôde o simples labor humano alinhar a harmonia
[da tuas cordas)
Terrível limiar da aliança do profeta,
Da oração dos banidos, do pranto dos amantes.

Mais uma vez os faróis dos automóveis deslizam velozes
Pelo teu indiviso idioma, como suspiros estelares, imaculados,
Contas de um rosário que condensa a eternidade.
E contemplamos a noite erguida nos teus braços.

Junto às tuas sombras, encostado aos pilares, eu esperei;
Só na escuridão são claras as tuas trevas.
Os edifícios da cidade, submersos pela neve de mais um ano,
lembram prendas de Natal desembrulhadas.

Insone como o rio que passa sob ti
Cobres o mar e sonhas com a turfa das pradarias.
Vem, ó Ponte, condescende com a nossa humildade,
E da tua curvatura empresta um mito a Deus.

Tradução de João de Mancelos

quinta-feira, 26 de março de 2009

CARONTE, NOITE E MORFEU


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Cena: O Barco de Caronte, a Noite e Morfeu, de Luca Giordano. Afresco na galeria do Palazzo Medici-Riccardi, em Florença.

VICENTE HUIDOBRO

DE VER E PALPAR

O iceberg sereno como um imperador
Segue sua sina
Obedece cegamente às linhas de sua mão

Tradução de Carlos Nejar

quarta-feira, 25 de março de 2009

SIBILA

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Sibila Palmifera, de Dante Gabriel Rossetti

JOSÉ LEZAMA LIMA


UMA OBSCURA PRADARIA ME CONVIDA

Uma obscura pradaria me convida,
seus mantos estáveis e cingidos,
giram em mim, em meu balcão adormecem.
Dominam sua extensão, sua indefinida
cúpula de alabastro se recria.
Sobre as águas do espelho,
breve a voz em meio a cem caminhos,
minha memória prepara sua surpresa:
o gamo no céu, rocio, labareda.
Sem sentir que me chamam
penetro na pradaria devagar,
ufano em novo labirinto derretido.
Ali se vêem, ilustres restos,
cem cabeças, cornetas, mil alaridos
abrem seu céu, seu girassol calando.
Estranha a surpresa neste céu,
onde sem querer voltam pisadas
e soam as vozes em seu centro enchido.
Uma obscura pradaria vai passando.
Entre os dois, vento ou fino papel,
o vento, ferido vento desta morte
mágica, una e despedida.
Um pássaro e outro já não tremem.

Tradução de Alai Garcia Diniz

terça-feira, 24 de março de 2009

VÊNUS E ANCHISES

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Vênus e Anchises, de Annibale Carracci

WALMIR AYALA



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Walmir Ayala




Deus é o Incriado
é o tudo e o nada
o presente e o ausente
o respirado
e o expirado,
é a primeira imagem
e a última imagem
tocando-se num tempo
sem tempo;
é anterior
a todas as imagem,
é o que não teve espelho
é o que não se vestiu
e se vestiu de tudo
de água de ar de pó,
é o que manipulou
o pó e a brasa ardendo
ciclo perfeito, o anel.
É o brilho, a matéria
o símbolo do anel
é o invisível dedo
da aliança, o espírito
do vinho, violeta
violáceo rá.
Deus é o que há
sem ter sido, no entanto
inacabado sendo
o que não evolui,
é o santo
o címbalo
o fumo
o absinto
o abismo
o projeto
do amor
mais que perfeito.
É o último
teto
do inimaginável.
É a algema,
a asa livre:
é a Imagem.
Apago a luz e penso:
mais uma vez apago a luz,
e respiro para me sentir respirando
com cautela e pasmo.
Hoje vi retratos de meus mortos,
sorriem em praças e paisagens
inatuais.
E eu aqui, ainda vivo,
como? por que? até quando?
Cada trilha me inspira
a despedida,
e eu me vejo ao lado dos mortos
e eles não me vêem
na névoa dos retratos.
Quem me esqueceu neste lado?

segunda-feira, 23 de março de 2009

PIGMALIÃO E GALATÉIA

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Pigmalião e Galatéia, de Jean-Léon Gerome

THIAGO DE MELLO


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Thiago de Mello



OS ESTATUTOS DO HOMEM
(ATO INSTITUCIONAL PERMANENTE)

Artigo I

Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II

Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III

Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV

Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V

Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI

Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII

Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII

Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX

Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X

Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.

Artigo XI

Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII

Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII

Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final

Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

domingo, 22 de março de 2009

DÂNAE


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Dânae (c. 1621), de Orazio Gentileschi


W. H. AUDEN


BLUES FÚNEBRE

Detenham-se os relógios, cale o telefone,
jogue-se um osso para o cão não ladrar mais,
façam silêncio os pianos e o tambor sancione
o féretro que sai com seu cortejo atrás.

Aviões acima, circulando em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Pombas de luto ostentem crepe no pescoço
e os guardas ponham luvas negras como breu.

Ele era norte, sul, leste, oeste meus e tanto
meus dias úteis quanto o meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto.
Julguei o amor eterno: quem o faz se engana.

Apaguem as estrelas: já nenhuma presta.
Guardem a lua. Arriado, o sol não se levante.
Removam cada oceano e varram a floresta.
Pois tudo mais acabará mal de hoje em diante.

Tradução de Nelson Ascher