Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

sábado, 6 de dezembro de 2008

ORFEU E EURÍDICE

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Orfeu e Eurídice (1810), de Friedrich Rehberg

MÁRIO CHAMIE


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Mário Chamie


GALERIAS

Nas vastas galerias de sombras
passam os detritos. As ondas.

Um barco navega: fantasma
com ferrugem nos cascos
com caveiras no mastro
com salsugem nas quilhas.

Nas baixas galerias das vias,
o lodo concentra-se em pilhas,
um sapo deglute a mosca,
seu peixe de água salobra.

Nas sujas galerias do esgoto,
um crime carrega seu corpo,
um trem trafega sem rumo,
um lodo concentra seu sumo.

Nas vastas galerias de sombras,
o pesadelo pesado do povo
pesa seu sono de chumbo,
dorme em seu leito de escombros.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

SÍSIFO

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Sísifo, de Ticiano Vecellio

CESARE PAVESE

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Cesare Pavese

MANIA DA SOLIDÃO

Como um jantar frugal junto à clara janela,
Na sala já está escuro mas ainda se vê o céu.
Se saísse, as ruas tranqüilas deixar-me-iam
ao fim de pouco tempo em pleno campo.
Como e observo o céu — quem sabe quantas mulheres
estão a comer a esta hora — o meu corpo está tranqüilo;
o trabalho atordoa o meu corpo e também as mulheres.

Lá fora, depois do jantar, as estrelas virão tocar
a terra na ancha planura. As estrelas são vivas,
mas não valem estas cerejas que como sozinho.
Vejo o céu, mas sei que entre os tetos de ferrugem
brilha já alguma luz e que, por baixo, há ruídos.
Um grande gole e o meu corpo saboreia a vida
das árvores e dos rios e sente-se desprendido de tudo.
Basta um pouco de silêncio e as coisas imobilizam-se
no seu verdadeiro sítio, como o meu corpo imóvel.

Cada coisa está isolada ante os meus sentidos,
que a aceita impassível: um cicio de silêncio.
Cada coisa na escuridão posso sabê-la,
como sei que o meu sangue circula nas veias.
A planura é água que escorre entre a erva,
um jantar de todas as coisas. Cada planta e cada pedra
vivem imóveis. Escuto os alimentos e eles alimentam-me as veias
com todas as coisas que vivem nesta planura.

A noite importa pouco. O retângulo de céu
sussurra-me todos os fragores e uma estrela miúda
debate-se no vazio, longe dos alimentos,
das casas, distinta. Não se basta a si mesma
e precisa de muitas companheiras. Aqui no escuro, sozinho,
o meu corpo está tranqüilo e sente-se soberano.

Tradução de Carlos Leite

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

MORFEU E ÍRIS


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Morfeu e Íris (1811), de Pierre-Narcisse Guérin

MOACY CIRNE

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Moacy Cirne

POESIA

o potengi me naufraga:
eis-me devorado
por seus crepúsculos
seus mangues
suas mulheres
rosas dos ventos
e outros alentos
memória que me faz igapó
como se potengi eu fora o rio
barra nova ou seridó
entre a ribeira e a redinha
o itans e o poço de santana
a aurora e o espanto
noite sol extremoz e luar
nas madrugadas do amanhã
com as putas do wunder-bar
e as cores silenciosas da manhã

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

ATALANTA E HIPOMENE

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Atalanta e Hipomene (1623), de Guido Reni

MÁRIO CESARINY

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Mário Cesariny

EM TODAS AS RUAS TE ENCONTRO

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

MEDÉIA

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Medéia (1868), de Anthony Frederick Augustus Sandys

MINA LOY


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Mina Loy


FOTO APÓS O POGROM

Arranjo por raiva
da escória humana

as estátuas falsas e eternas do assassinato,
até ficarem puras.

Jogada numa pilha de mortos,
uma mulher,
corpo saqueado de profunda beleza
estranhamente assassinada

conquista o sorriso absoluto
da despossessão:

a pausa marmórea diante do abrigo extinto
Monotonia da morte
Rasura do medo,

uma compostura
não-admitida

a paz sem propósito
selando as faces
dos cadáveres—

Cadáveres são virgens.

Tradução de Rodrigo Garcia Lopes

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

SÍSIFO

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Sísifo (1920), de Franz von Stuck

RAINER MARIA RILKE

ELEGIAS DE DUÍNO

Primeira Elegia


Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos
me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse
inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia
sua existência demasiado forte. Pois que é o Belo
senão o grau do Terrível que ainda suportamos
e que admiramos porque, impassível, desdenha
destruir-nos? Todo Anjo é terrível.
E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo
do meu soluço obscuro. Ai, quem nos poderia
valer? Nem Anjos, nem homens
e o intuitivo animal logo adverte
que para nós não há amparo
neste mundo definido. Resta-nos, quem sabe,
a árvore de alguma colina, que podemos rever
cada dia; resta-nos a rua de ontem
e o apego cotidiano de algum hábito
que se afeiçoou a nós e permaneceu.
E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços
do mundo desgasta-nos a face – a quem se furtaria ela,
a desejada, ternamente enganosa, sobressalto para o
coração solitário? Será mais leve para os que se amam?
Ai, apenas ocultam eles, um ao outro, seu destino.
Não o sabias? Arroja o vácuo aprisionado em teus braços
para os espaços que respiramos – talvez os pássaros
sentirão o ar mais dilatado, num vôo mais comovido.
Sim, as primaveras precisavam de ti.
Muitas estrelas queriam ser percebidas.
Do passado profundo afluía uma vaga, ou
quando passavas sob a janela aberta,
uma viola d’amore se abandonava. Tudo isto era missão.
Acaso a cumpriste? Não estavas sempre
distraído, à espera, como se tudo
anunciasse a amada? (Onde queres abrigá-la.
se grandes e estranhos pensamentos vão e vêm
dentro de ti e, muitas vezes, se demoram nas noites?)
Se a nostalgia vier, porém, canta as amantes;
ainda não é bastante imortal sua celebrada ternura.
Tu quase as invejas – essas abandonadas
que te pareceram tão mais ardentes que as
apaziguadas. Retoma infinitamente o inesgotável
louvor. Lembra-te: o herói permanece, sua queda
mesma foi um pretexto para ser – nascimento supremo.
Mas às amantes, retoma-as a natureza no seio
esgotado, como se as forças lhe faltassem
para realizar duas vezes a mesma obra.
Com que fervor lembraste Gaspara Stampa,
cujo exemplo sublime faça enfim pensar uma jovem
qualquer, abandonada pelo amante: por que não sou
como ela? Frutificarão afinal esses longínquos
sofrimentos? Não é tempo daqueles que amam libertar-se
do objeto amado e superá-lo, frementes?
Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no vôo
mais do que ela mesma. Pois em parte alguma se detém.

Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como outrora apenas
os santos ouviam, quando o imenso chamado
os erguia do chão; eles porém permaneciam ajoelhados,
os prodigiosos, e nada percebiam,
tão absortos ouviam. Não que possas suportar
a voz de Deus, longe disso. Mas ouve essa aragem,
a incessante mensagem que gera o silêncio.
Ergue-se agora, para que ouças, o rumor
dos jovens mortos. Onde quer que fosses,
nas igrejas de Roma e Nápoles, não ouvias a voz
de seu destino tranqüilo? Ou inscrições não se ofereciam,
sublimes? A estela funerária em santa Maria Formosa...
O que pede essa voz? A ansiada libertação
da aparência de injustiça que às vezes perturba
a agilidade pura de suas almas.

É estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra,
abandonar os hábitos apenas aprendidos,
às rosas e a outras coisas singularmente promissoras
não atribuir mais o sentido do vir-a-ser humano;
o que se era, entre mãos trêmulas, medrosas,
não mais o ser; abandonar até mesmo o próprio nome
como se abandona um brinquedo partido.
Estranho não desejar mais nossos desejos. Estranho,
ver no espaço tudo quanto se encadeava, esvoaçar,
desligado. E o estar-morto é penoso
e quantas tentativas até encontrar em seu seio
um vestígio de eternidade. – Os vivos cometem
o grande erro de distinguir demasiado
bem. Os Anjos (dizem) muitas vezes não sabem
se caminham entre vivos ou mortos.
Através das duas esferas, todas as idades a corrente
eterna arrasta. E a ambas domina com seu rumor.

Os mortos precoces não precisam de nós, eles
que se desabituam do terrestre, docemente,
como de suave seio maternal. Mas nós,
ávidos de grandes mistérios, nós que tantas vezes
só através da dor atingimos a feliz transformação, sem eles
poderíamos ser? Inutilmente foi que outrora, a primeira
música para lamentar Linos, violentou a rigidez da
matéria inerte? No espaço que ele abandonava, jovem,
quase deus, pela primeira vez o vácuo estremeceu
em vibrações – que hoje nos trazem êxtase, consolo e amparo.

Tradução de Dora Ferreira da Silva

domingo, 30 de novembro de 2008

MORFEU

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Nos braços de Morfeu (1894), de William E. Reynolds-Stephens

THÉOPHILE GAUTIER

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Théophile Gautier



A ESFINGE

No Jardin Royal, das figuras esculpidas
A Quimera antiga me dá maior deleite;
Ela estufa adiante suas mamas erguidas,
Qual se o mármore venoso se enchesse de leite.

Sua face de mulher é a mais bela de todas,
Seu pescoço carnudo, você o beijaria;
Mas fazendo-lhe a volta, sob as ancas redondas,
Aparecem nos pés suas garras de harpia.

As crianças de colo, passando-lhe em frente,
Lhe estendem os braços, querendo elas mesmas
Colar nas mamas geladas suas bocas tão quentes;
Porém ao tocá-las, se afastam surpresas.

É o que sempre acontece com as nossas quimeras:
Têm o rosto charmoso e o reverso inclemente.
Nós beijamos seus seios, mas essas megeras
Não nos pousam no lábio uma gota de leite.

Tradução de Dirceu Villa