Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

sábado, 7 de março de 2009

CLIO

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Clio (1689), de Pierre Mignard


FEDERICO GARCIA LORCA

A CASADA INFIEL

A Lydia Cabrera
e à sua negrinha

E eu que a levei até o rio
achando que era donzela,
mas ela tinha marido.
Foi na noite de Santiago
e quase por compromisso.
Apagaram-se os lampiões
e se acenderam os grilos.
Pelas últimas esquinas
toquei seus peitos dormidos,
que a mim se abriram de pronto
como ramos de jacintos.
A goma de sua anágua
ao meu ouvido soava
como uma peça de seda
lacerada por dez facas.
Sem luz de prata nas copas
as árvores têm crescido,
e um horizonte de cães
ladra bem longe do rio.

*

Passadas as amoreiras,
os juncos e os espinheiros,
para abrigar seus cabelos
fiz um ninho sobre o limo.
Eu tirei minha gravata.
Ela tirou o vestido.
Eu, o cinto com revólver.
Ela, seus quatro corpetes.
Nem flores nem caracóis
têm uma pele tão fina,
nem os cristais sob a lua
resplendem com um tal brilho.
Suas coxas me escapavam
como peixes surpreendidos,
metade cheias de luz,
metade cheias de frio.
Naquela noite trilhei
dos caminhos o melhor,
montado em potra de nácar
sem rédeas e sem estribos.
Não vou dizer, por ser homem,
as coisas que ela me disse.
A luz do entendimento
me faz ser mais comedido.
Suja de beijos e areia
levei-a embora do rio.
Ao vento se digladiavam,
no ar, as espadas dos lírios.

Portei-me como quem sou.
Como um gitano legítimo.
Dei-lhe um cesto de costura
grande, de raso palhiço,
e não quis me enamorar
porque, tendo ela marido,
me disse que era donzela
quando a levava até o rio.

Tradução de Fábio Aristimunho

sexta-feira, 6 de março de 2009

NINFAS


reprodução

Ninfas, de Adolphe William Bouguereau

ALLEN GINSBERG


reprodução

Allen Ginsberg


SUTRA DO GIRASSOL

Caminhei nas margens do abandonado cais de lata onde outrora
descarregavam banana e fui sentar na sombra enorme de uma locomotiva lá perto
para olhar e chorar o sol morrendo em ladeiras sobre as casas todas iguais.
Jack amigo Kerouac sentou-se ao lado no ferro de um mastro roto partido
e a gente caiu na maior fossa do mundo, os dois ilhados, dois contidos
na rede das raízes de aço,
e eu e Jack pensando os mesmos pensamentos da alma.
No rio a correnteza de óleo refletia o céu rubro, o sol caía
pelas alturas finais de San Francisco, sem que houvesse
peixe nessas águas, sem que houvesse um ermitão nas montanhas, só a gente
com olhos de ressaca e remela, feito vagabundos, cheios de astúcia e cansaço.
Olha só um girassol, Jack então disse, e havia o vulto inerte e cinzento
seco, do tamanho de um homem, recostado
num monte milenar de serragem.
- Eu pulei de alegria e era o primeiro girassol de minha vida, eram memórias
de Blake - essas visões - o Harlem
e os rios do inferno-leste, sanduíches indigestos trotando
um ranger de pontes, carrinhos de bebê encalhados, esquecidos
pneus de bojo negro careca, penicos
& camisas-de-vênus, o poema da margem, canivetes, nada inox, só o mofo
o lixo de tantas coisas cortantes cujo fio passava
para o passado -
e o cinzento girassol se equilibrando ao sol-posto,
desmanchando-se abatido na invasão da fuligem, da fumaça, do pó
de velhas locomotivas no olho -
corola e também coroa com as pontas amassadas virando, com sementes
despencando do rosto, rompendo em breves dentes um dia
claro, raios de sol grudando em seu cabelo riscado
como uma exangue teia de aranha de arame;
caule com braços-folhas jogados, os gestos da raiz de serragem,
pedaços de reboco minando nos galinhos queimados
e uma mosca estagnada no ouvido,
você de fato era uma incrível coisa imprestável, ó meu girassol minha
alma, e como eu te amei então!
sujeira não era parte do homem, era a parte da morte e das locomotivas
humanas,
simples roupa empoeirada, o simples véu da pele férrea, a cara
da fumaça, as pálpebras da escura miséria, a mão
ou falo ou tumor mortiço do imundo motor moderno industrificial disso
tudo, o bafo da civilização poluindo
tua coroa muito louca de ouro -
esses turvos pensamentos de morte, a grande falta
de amor em fins e olhos tapados, raízes abafadas em areia
e serragem, os dólares raspantes elásticos, o couro das máquinas, as
tripas enroscadas de um carente carro que tosse, as solitárias
latas baratas com línguas rotas de fora, e o que mais seja, a cinza
que escorre pela boca na ereção de um charuto, a boceta
de um carrinho de mão, ou os seios acesos de viaturas lácteas, o rabo gasto
que as cadeiras expelem, o esfíncter dos dínamos - tudo
isso embolado nas raízes-múmias -
e você aí de pé na minha
na tarde da minha frente, a sua glória em sua forma!
beleza perfeita, um girassol! uma tranqüila e girassol existência
excelente e perfeita! um olho doce natural para a melancolia da lua
nova, desperto vivo excitado
sacando no crepúsculo sombra a brisa mensual de ouro aurora!
enquanto você lançava blasfêmias
para o céu da via férrea e sua própria floralma,
quantas moscas zumbiram na sua extrema imundície
sem ligar para nada?
Quando, flormortapobre, você esqueceu que é uma flor?
quando olhou sua pele e decidiu que era a velha
suja locomotiva impotente? o fantasma de uma
locomotiva? o espectro e sombra de uma já poderosa
locomotiva americana maluca?
não, girassol, você não foi locomotiva nunca, você foi sempre um girassol!
você, locomotiva, você é o motivo louco de sempre, a locomotiva!
pensando isso peguei o grosso girassol esqueleto e o finquei a meu lado
como um cetro
fiz o meu sermão à minha alma, e também à de Jack, e tambérn à de todos
que ainda queiram ouvir:
Não somos a sujeira da pele, não somos nossa locomotiva medonha triste
poeirenta com ausência de imagem, nós somos todos uns lindos girassóis
por dentro, somos sagrados por nossas próprias sementes &
peludos pelados dourados corpos de ação virando girassóis ao crepúsculo
loucos girassóis formais e negros que esses olhos espiam
na sombra da locomotiva maluca margem beira
San ladeiras Francisco
tarde de lata
sol-posto sentar-se vision.

Tradução de Leonardo Fróes

quinta-feira, 5 de março de 2009

CUPIDO

reproduçãoCupido com uma borboleta, de Adolphe William Bouguereau

ALEKSANDR BLOK

OS DOZE

IX

Não se ouve o ruído da cidade.
Sobre o Nevá o silêncio é pesado.
Já se foi o guarda nocturno:
Ao gozo, malta, sem vinho!

Numa esquina está um burguês
com o nariz tapado.
E um cão mete-se-lhe entre os pés,.
sarnoso, indeciso, com o rabo entre as pernas.

O burguês, com o cão esfomeado,
Está indeciso e calado.
E o velho mundo, como um cão sarnoso,
está atrás dele com o rabo entre as pernas.

X

A tempestade põe-se furiosa,
ah, que tempestade de neve!
A dois passos não se vê nada,
Com esta tempestade!

A neve gira como num funil,
a neve levanta-se como uma coluna…

“Oh, que tempestade, Senhor!”
“Petka! Eh, deixa-te de parvoíces!
De que te salvou
o ícone dourado?
Que falta de sentido, também,
pensa bem,
ou não tens sangue nas mãos
por amor da tua Katka?”
“Firme o passo revolucionário!”

O inimigo está cada vez mais perto!

Avante, avante, avante,
povo trabalhador!

XI

…E sem nenhum nome sagrado,
os doze seguem avante.

Estão dispostos a tudo
sem nada a lamentar…

Os seus fuzis de aço apontam
contra o inimigo que não se vê…
por ruelas escuras,
onde a neve cai feroz…
E da neve mole
não podem sair as botas…

A bandeira vermelha
os olhos lhes fustiga.

Ouvem-se
os seus passos ritmados.

A qualquer momento pode despertar
o inimigo cruel.

E a neve caía nos olhos
dias e noites
sem parar…

Avante, avante,
povo trabalhador!

XII

… E avançam com passo seguro…
“Quem vai lá? Saia!"
É apenas o vento na bandeira vermelha
que ondeia à frente…

À frente há um monte de neve gelada.
“Quem vai lá? Saia!”
Só um cão vadio esfomeado
aparece a coxear…

“Não nos acompanhes, cão sarnoso,
ou far-te-ei cócegas com a baioneta!
E tu, velho mundo, como um cão sarnoso,
Desaparece ou desfazer-te-ei!”

… Mostra os dentes como um lobo faminto,
não fiques de rabo entre as pernas,
cão sarnoso, cão vadio…
“Eh, responde! Quem vai lá?”

“Quem agita aí a bandeira vermelha?”

“Olha bem, que escuridão!”
“Quem vai lá, furtivamente,
escondendo-se atrás das casas?”

“Tanto faz, vou agarrar-te.
Vale mais que te entregues vivo!”
“Eh, camarada, será pior,
sai ou começamos a disparar!”

Tra-ta-ta! E só o eco
Ecoa das casas
Só a tempestade com uma risada ampla
Estala na neve

Tra-ta-ta!
Tra-ta-ta!

E assim vão com passo guerreiro,
atrás do cão esfomeado,
e à frente a bandeira sangrante,
e invisível na neve
e imune às balas,
através da tempestade que aparece, terna,
espalhando um tesouro de pérolas de neve,
com uma coroa de rosas brancas
- à frente vai Jesus Cristo.

Tradução de Manuel de Seabra

quarta-feira, 4 de março de 2009

CALÍOPE

wikimedia
Calíope, de Marcello Bacciarelli

ALEKSANDR BLOK

OS DOZE

IV

A neve gira, o cocheiro grita
Com Vanda e Kátia no trenó!
E na berlinda levam
Lanternas eléctricas…
Ah, ah, arre!…

Com o capote de soldado rasgado
tem cara de parvo.
Enrola o bigode preto,
torce-o
e diverte-se…

Aqui está Vanka, de costas largas!
Aqui está Vanka, o linguareiro,
Abraça a tua Kátia, convence-a…

Ela inclina a cabeça para trás,
Os seus dentes pequenos brilham como pérolas…
Ah, tu, Kátia, Kátia minha,
bochechuda!

V

Tens uma cicatriz no pescoço,
Kátia, a cicatriz de uma facada.
No peito, Kátia,
tens uma unhada fresca!

Eh, eh, dança!

Que pernas tão bonitas!

Levavas roupas de rendas;
por que não agora?
Fodias com oficiais,
por que não agora?

Fode, fode!
O coração salta-me no peito!

Recordas, Kátia, aquele oficial,
Que não se salvou da navalha…
Não te lembras dele?
Ou não tens a memória fresca?

Eh, eh, refresca-a,
mete-me na cama contigo!

Polainas cinzentas levavas,
e tomavas chocolate,
ias p’rà cama com cadetes…
Agora vais com soldados?

Eh, eh, peca, peca!
Vais sentir a alma mais leve!

VI

Outra vez se achega o cocheiro,
voa, grita, vocifera…

Alto, alto! Andriukha, socorro!
Petrukha, corre atrás dele!

Ta-tarara! ta-ta-ta-ta!
O pó da neve voa para o céu!…

O cocheiro foge com Vanka!…
Uma vez mais carrega o gatilho…

Tra-tarara! Vamos dar-lhe uma lição,
…………………………………………………..……..
o que é andar com a miúda de outro!

O canalha escapou-se! Verás
como amanhã acabo contigo!

E Kátia, onde está? Morta a deixei,
com uma bala na cabeça!

Estás contente, Kátia! Não se mexe…
Jaz morta sobre a neve!…

Firme o passo revolucionário!
Não descansa o inimigo!

VII

E de novo avançam os doze,
às costas levam fuzis.
E só ao pobre assassino
não se lhe vê a cara…

Cada vez mais depressa,
os passos vão-se avivando.
Leva um lenço ao pescoço
E não se pode aguentar…

“Por que estás triste, camarada?”
“Amigo, que te põe calado?”
“Porquê, Petrukha, estás triste?
Ou choras a pobre Kátia?”

“Eh, camaradas, companheiros,
eu gramava essa miúda…
Muitas noites embriagadas
Passei nos seus braços…”

“Pela força arrogante
dos seus olhos de fogo,
por aquele sinal vermelho
na sua coxa direita,
matei, homem fraco,
e matei-a por ciúme.. ai!”

“Como nos incomoda este maldito!
Tu, Petka, és uma mulher?”
Queres arrancar a alma
E mostrá-la a todos? Fá-lo!

“Levanta o peito!”
“É preciso que te domines!”

“Este momento não é
de mimar a miudagem.

É o momento de uma carga
Mais forte, querido camarada!”

E Petrukha demora
a pressa dos seus passos…

A cabeça levanta
e de novo se alegra…

Eh, eh!
Divertir-se não é pecado!

Fechem as casas,
porque hoje haverá saque!

Abram as adegas,
Hoje divertem-se os pobres!

VIII

Ai, tu, que amargura!
Que morte
tenebrosa!

Rico tempo
vou passar, vou passar…

A cabeça
vou coçar, vou coçar…

E pevides de girassol
vou comer, vou comer…

E a navalha
Farei servir, farei servir…

Tu, burguês, foge como um pardal!
Beberei o teu sangue,
por causa desta rapariguinha
de sobrancelhas negras…

Que descanse em paz, Senhor,
a alma da tua serva…

Que aborrecimento!

Tradução de Manuel de Seabra

terça-feira, 3 de março de 2009

SÁTIRO

reprodução
Estudo para Ninfas e Sátiros, de Adolphe William Bouguereau

ALEKSANDR BLOK

reprodução
Aleksandr Blok

OS DOZE

I

Noite negra,
Branca Neve.
Vento, vento!
Nem um só homem se aguenta de pé.
Vento, vento
Por este mundo de Deus!

O vento faz girar
a branca neve.
Há gelo debaixo da neve leve.
Resvaladios, pesados,
Deslizam os passos
Na rua… Ah, coitado!

Entre duas casas,
estenderam uma corda.
E na corda um cartaz:
“Todo o poder à Assembleia Constituinte!”
Uma anciã chora,
não percebe o que quer dizer
aquele cartaz.
E porquê um cartaz tão grande?
Quantas peúgas se podiam fazer para a garotada
Que tem os pés gelados…
A velha, como uma galinha
Espantada, atravessa um monte de neve.
“Ah, Virgem Santíssima,
estes bolchevistas atiram-nos à cova!”

Vento que corta!
Não aguentas o frio!
E um burguês numa esquina
Esconde bem o nariz.

Mas quem é este? De cabelo comprido
e diz em voz baixa:
Traidores!
É o fim da Rússia!”
É talvez um escritor
ou um orador…

E aí vai um homem de saias,
esconde-se atrás do monte de neve…
Por que estás hoje triste,
camarada pope?

Recordas como antes
andavas de peito saído
e a cruz te fazia brilhar
a barriga aos olhos do povo?

Uma dama vestida de astracã
vira-se para outra
“E como temos chorado…”
Nisto escorrega
E – pumba! – cai estatelada!

Ai, ai!
Vamos ajudá-la!

O vento é alegre,
alegre e cruel.

Agita as roupas
dos caminhantes,
rasga, aperta e agita
o grande cartaz:
“Todo o poder à Assembleia Constituinte!”
E traz-nos estas palavras:

“…Fizemos uma reunião…
…naquele edifício…
…discutimos…
e decidimos:
Ir prò quarto dez rublos,
dormida vinte e cinco…
… não pode ser por menos…
Vem daí…”

Anoitece.
Esvazia-se a rua
Só ficou um mendigo
curvado
e o vento assobia…

Eh, pobre homem!
Ana,
Abraça-me…

Quero pão!
E depois quê?
For a!

O céu está escuro.
Raiva, uma triste raiva
ferve nos peitos…
Raiva negra, raiva santa…

Camarada! Fica
De olhos bem abertos!

II

Voa a neve e passeia o vento.
E os doze homens avançam.

Correias negras nos fuzis,
e à volta muitas luzes…

Entre os lábios um cigarro,
o chapéu enfiado
e nas costas um ás de ouros!

Liberdade, liberdade!

Ah, ah, vão sem a cruz!

Tra-ta-ta!


Faz frio, camarada, faz frio!

“Vanka está com Kátia na taberna…”
“Ela leva o dinheiro na peúga!”

“Vanka é agora rico…”
“Era dos nossos e agora é soldado!”

“Vamos, Vanka, grande sacana burguês,
dá um chocho À minha miúda!”

Liberdade, liberdade,
ah,ah, vão sem a cruz!
Kátia está ocupada com Vanka,
E está ocupada com quê?

Tra-ta-ta!

Há mil luzes à solta…
Nas costas a correia do fuzil!…

Firme o passo revolucionário!
O inimigo nunca dorme!
Pega sem medo no fuzil, camarada!
Disparemos uma bala à Santa Rússia!

A reaccionária,
a das isbás,
a do cu grande!
Ah, ah, vão sem a cruz!

III

Assim é a nossa juventude:
servir na guarda vermelha,
servir na guarda vermelha,
e perder as suas cabeças loucas!

Ah, tu, pobre,
doce vida!
Dólman rasgado
e fuzil austríaco!

Para que todos os burgueses sofram,
lançaremos fogo ao mundo,
fogo ao mundo que nasceu com sangue.
Senhor, a tua benção!

Tradução de Manuel de Seabra

segunda-feira, 2 de março de 2009

domingo, 1 de março de 2009

ENDIMIÃO


wikimedia

O Sono de Endimião, de Anne-Louis Girodet de Roussy-Trioson


PAUL VALÉRY

ESBOÇO DE UMA SERPENTE

Entre a árvore, a brisa acalenta
a víbora que hei de vestir;
um sorriso, que o dente espeta
e de apetites vem luzir,
sobre o jardim se arrisca e vaga,
e o meu triângulo de esmeralda
atrai a língua do reptil...
Besta sou, porém besta arguta,
cujo veneno, embora vil,
deixa longe a sábia cicuta!

Suave é este tempo de prazer!
Tremei, mortais, ao meu valor
quando, sem me satisfazer,
bocejo e quebro o meu torpor!
A esplendidez do azul aguça
esta cobra que me rebuça
de uma animal simplicidade:
vinde a mim, ó raça aturdida!
Que estou prestes e decidida,
semelhante à necessidade!

Ó Sol, ó Sol!... Falta estupenda!
Tu que mascaras o morrer,
sob o azul e o ouro de uma tenda
onde as flores vão se acolher;
em meio a mil delícias baças,
tu, o mais feroz dos meus comparsas,
dos meus ardis o mais perfeito,
aos corações não deixas ver
que este universo é só um defeito
na puridade do Não-Ser!

Ó Sol, que soas as matinas
do ser, e em fogos o acompanhas,
que num fatal sono o arrepanhas
todo pintado de campinas,
fautor de fantasmas risíveis
que prendes às coisas visíveis
a presença obscura da alma,
sempre me agradou a mentira
que tu sobre o absoluto espalhas,
rei das sombras tornado pira!

A mim o teu calor brutal,
onde a minha preguiça gelada
vem devanear sobre algum mal
próprio à minha índole enlaçada...
Este amável lugar me seduz
onde cai a carne e produz!
Aqui meu furor amadura;
e eu o aconselho, e eu o refaço,
e me escuto, e em meio aos meus laços
minha meditação murmura...

Ó Vaidade! Causa primeira,
que domina os Céus e os conduz,
de uma voz que já foi a luz
abrindo o cosmo sem fronteira!
Lasso de Seu puro espetáculo,
o próprio Deus rompeu o obstáculo
de tão perfeita eternidade;
ele se fez O que dispersa
em conseqüências Seu começo,
em estrelas Sua Unidade.

O Céu, Seu erro! E o Tempo, a ruína!
E o abismo animal alargado!
Queda naquilo que origina,
fagulha em vez do puro nada!
Mas o primeiro som do Seu Verbo,
EU!... dos astros o mais soberbo
que disse o louco criador –
eu sou!... Eu serei... E ilumino
esse diminuir divino
dos fogos do grão Sedutor!

Radioso objeto de minha ira,
Tu, que amei de um amor flamante,
e que da geena decidiste
conceder o império a este amante,
nos meus escuros Te remira!
Que ao veres Teu reflexo triste,
troféu do meu espelho negro,
tenhas tão funda comoção,
que sobre a argila o Teu ofego
seja um suspiro de aflição!

Em vão moldaste nessa lama
a prole dos fáceis infantes
que dos Teus atos triunfantes
a eterna louvação proclama!
Tão logo secos – e perfeitos,
são da Serpente já desfeitos,
filhos que o Teu criar produz.
Olá, lhes diz, recém-chegados!
Homens que sois, e andais tão nus,
animais brancos e abençoados!

Odeio-vos, que do execrado
à semelhança fostes feitos,
tal como ao Nome que tem criado
esses prodígios imperfeitos!
Eu sou o agente da mudança,
retoco o peito que se afiança,
de um dedo exato e misterioso!
Transformaremos essas obras
e as evasivas, moles cobras
em répteis negros, furiosos!

Meu intelecto inumerável
toca no humano coração
o instrumento de minha raiva,
que foi feito por Tua mão!
E Tua Paternidade alada,
todo aquele que, na estrelada
câmara ela acolha que a afague,
sempre o excesso dos meus assaltos
lhe traga uns longes sobressaltos
que seus propósitos estrague!

Vou e venho, deslizo, enfronho,
desapareço em peito puro!
Houve jamais seio tão duro
onde não possa entrar um sonho?
Quem quer que sejas, não sou esta
complacência que te requesta
a alma, desde que ela se ame ?
Ao fundo sou de seu favor
este inimitável sabor
que de ti em ti se derrame!

Eva! que eu tenho surpreendido
em seus primeiros pensamentos,
o lábio aos hálitos rendido
que das rosas se evolam lentos.
Quão perfeita me apareceu,
de ouro coberto o flanco seu,
sem temor ao sol nem ao homem;
ofertada aos olhos da brisa,
a alma ainda estúpida, tal como
perplexa ante a carne, indecisa.

Oh, massa de beatitude,
és tão bela, prêmio veraz
para toda a solicitude
das almas boas e das más!
Para que aos lábios teus se prendam,
basta que a um sopro teu se rendam!
Tornam-se piores os mais puros,
logo se ferem os mais duros...
Também a mim teus dons encantam,
de quem vampiros se levantam!

Sim! De meu posto entre a folhagem –
réptil que de ave se fingia –,
enquanto a minha pabulagem
uma armadilha te tecia,
eu te bebi, surda beldade!
Prenhe de encanto e claridade,
eu dominava, sem tremer,
fixo o olho em tua lã dourada,
tua nuca obscura e carregada
dos segredos do teu mover!

Presente estive, qual odor
que a alguma idéia corresponda,
cujo fundo, insidioso negror
não se elucida nem se sonda!
Pois eu te inquietava, ó candura,
carne molemente segura,
sem ter de mim nenhum temor,
a tremer em teu esplendor!
Logo eu te tinha, eu te levava,
e tua nuança variava!

(A soberba simplicidade
demanda infinitos cuidares!
Sua transparência de olhares,
tolice, orgulho, felicidade
guardam bem a bela cidade!
Procuremos criar-lhe azares,
e traga o mais raro artifício
ao peito puro o seu motim.
Eis minha força, o meu ofício,
a mim os meios do meu fim!)

Ora, de uma baba ofuscante
fiemos os suaves assaltos
que façam com que Eva, hesitante,
se envolva em vagos sobressaltos.
Que sob a seda da surpresa
palpite a pele dessa presa,
acostumada ao azul puro!...
Mas de gaze nem uma trama,
nem fio invisível, seguro,
além da que meu estilo trama!

E ditos, língua, redourados,
dá-lhe os mais doces que conheças!
Alusões, fábulas, finezas,
e mil silêncios cinzelados,
emprega tudo o que a seduza:
nada que a não bajule e induza
a se perder nas minhas vias,
dócil aos declives que guiam
para o fundo das azuis bacias
os veios que nos céus se criam.

Oh, quanta prosa sem parelha,
quanto espírito não recoso
e lanço ao dédalo sedoso
dessa maravilhosa orelha!
Penso: lá nada é sem proveito,
tudo importa ao suspenso peito!
O triunfo é certo, se o propor,
da alma espreitando algum tesouro,
como uma abelha a alguma flor,
não deixa mais a orelha de ouro!

“Só o que o meu sopro lhe confere,
a ela, é a própria voz divina!
Uma ciência viva fere
o corpo do fruto maduro!
Não ouças o Ser velho e puro
que a breve mordida abomina!
Que, se a boca se põe a sonhar,
a sede que à seiva se atreva,
esta delícia por chegar,
é a eternidade fundente, Eva!”

Ela bebeu minha mensagem,
que tecia um estranho arranjo;
seu olho perdeu algum anjo
por penetrar minha ramagem.
O mais hábil dos animais
que se ri de seres tão dura,
ou pérfida e cheia de males,
é só uma voz entre a verdura!
– Mas Eva muito séria estava
e sob o galho ela a escutava!

“Alma, eu lhe disse, doce pouso
de tanto êxtase condenado,
não sentes este amor sinuoso
que foi por mim ao Pai roubado?
Tenho esta essência celestial
a fins mais doces do que o mel
reservado tão suavemente...
Apanha o fruto... Oh, que se estenda
a tua mão e, ardentemente,
te faça dele uma oferenda!”

Que silêncio – o bater de um cílio!
Que sopro no peito soçobra,
que a árvore mordeu de sua sombra!
O outro brilhava qual pistilo!
– Silva, silva! – ele me cantava!
E eu sentia fremir as mil
dobras do meu dorso sutil,
saindo então do meu abrigo:
rolaram atrás do berilo
de minha crista, até o perigo!

Ó gênio! Ó comprida impaciência!
Eis chegado o instante em que um passo
em direção à nova Ciência
fluirá de um fino pé descalço.
Aspira o mármore, o ouro enjambra!
Tremem as bases de sombra e âmbar
na véspera do movimento!...
Ela vacila, a grande urna,
de onde emana o consentimento
dessa aparente taciturna!

Do vivo prazer que antegozes,
belo corpo, cede aos apelos!
Que a sede de metamorfoses
em torno da Árvore dos Zelos
engendre a cadeia de poses!
Vem, sem vires! Ensaia passos
vagos, como ao peso de rosas...
Não penses! Dança nos espaços...
Aqui há causas deliciosas
que bastam ao curso das coisas!...

Oh, quanto é infértil a fruição
que me ofereço, com demência:
de ver tão suave compleição,
fremir em desobediência!...
Breve, emanando seu sustento
de sabedoria e ilusões,
toda a Árvore do Conhecimento,
esguedelhada de visões,
no amplo corpo que investe rumo
ao sol, bebe do sonho o sumo.

Grande Árvore, Sombra das Alturas,
irresistível Árvore de árvores,
que os sucos amáveis procuras
na fragilidade dos mármores,
ó tu, que os labirintos cevas
por onde as constrangidas trevas
se percam no marinho lume
da sempiterna madrugada,
doce perda, brisa ou perfume,
ou pomba já predestinada,

Cantor, secreto bebedor
das mais profundas pedrarias,
berço do réptil sonhador
por quem já Eva tresvaria,
grande Ser, pleno de saber,
que sempre, como por mais ver,
ao alto apelo de teu cimo
cedes, e ao ouro puro os braços
estendes, teus esgalhos baços,
de outra parte, cavando o abismo,

Podes o infindo repelir,
feito só de teu crescimento,
e, da tumba ao ninho, sentir
que és inteiro Conhecimento!
Mas este velho amante do impasse,
de uns secos sóis no inútil ouro,
vem em tua copa enroscar-se –
seus olhos fremem teu tesouro!
Frutos de morte, de incerteza,
de desespero ali sopesa!

Bela serpe, suspensa aos céus,
sibilo, com delicadeza,
ofertando à glória de Deus
o triunfo da minha tristeza...
Basta-me, nos ares tranqüilos,
que a ânsia do amargo fruto os filhos
do barro ponha em desvario...
– A sede que te faz tamanha
até ao Ser exalta a estranha
Toda-Potência do Vazio!

Tradução de Renato Suttana