Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

sábado, 29 de novembro de 2008

ORFEU


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Orfeu, de John Macallan Swan

OLIVERIO GIRONDO


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Oliverio Girondo


CANSAÇO

Cansado.
Sim!
Cansado
de usar um só baço,
dois lábios,
vinte dedos,
não sei quantas palavras,
não sei quantas memórias,
acinzentadas,
fragmentárias.

Cansado,
muito cansado
deste frio esqueleto,
tão pudico,
tão casto,
que quando se desnude
não saberá se é o mesmo
que usei enquanto vivia.

Cansado.
Sim!
Cansado
por precisar de antenas,
de um olho em cada omoplata
e de uma verdadeira cauda,
alegre,
desatada,
e não este rabo hipócrita,
degenerado,
anão.

Cansado,
sobretudo,
de sempre estar comigo,
de achar-me a cada dia,
quando termina o sonho,
ali, onde me encontre,
com as mesmas narinas
e com as mesmas pernas;
como se não desejasse
esperar o rompante com uma pele de praia,
oferecer, ao orvalho, dois seios de magnólia,
acariciar a terra com um ventre de lagarta,
e viver, uns meses, dentro de uma pedra.

Tradução de Marcilio Medeiros

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

ÁCIS E GALATÉIA

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Ácis e Galatéia, de Nicolas Poussin

RENÉ CHAR


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René Char


PARTILHA FORMAL

XL

Atravessar com o poema a pastoral dos desertos, o sacrifício às fúrias, o fogo bolorento das lágrimas. Correr atrás dele, implorar-lhe, injuriá-lo. Identificá-lo como sendo a expressão do nosso génio ou ainda o ovário esmagado da nossa penúria. Por uma noite irromper atrás dele, finalmente, nas núpcias da romã cósmica.

Tradução de Margarida Vale de Gato

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

BÍBLIS


wikimediaBíblis (1884), de William-Adolphe Bouguereau

WILLIAM SHAKESPEARE


NÃO ESTÁ NAS ESTRELAS O MEU TINO...

Não está nas estrelas o meu tino;
Sei um pouco, porém, de astronomia,
Mas não para prever qualquer destino,
Ou o tempo, a miséria, a epidemia:

Não posso em um minuto dar a sorte,
A cada qual seu raio, ou chuva, ou vento,
Nem por indícios a que o céu me aporte,
Ao príncipe augurar feliz intento.

Leio em teus olhos meu saber inteiro;
E neles (astros fixos) há tal arte,
Que juntos crescem o belo e o verdadeiro,

Se o que te é dado não é posto à parte:
Teu fim será, teus olhos dão-me o norte,
Da beleza e verdade o termo e a morte.

Tradução de Josely Vianna Baptista

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

PSIQUÊ E EROS

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O Rapto de Psiquê, de William-Adolphe Bouguereau

UMBERTO SABA


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Umberto Saba


Meu pai foi para mim "o assassino",
até os vinte anos, quando o conheci,
e vi que este meu dom dele recebi.

Tinha no rosto meu olhar azulino,
na dor um sorriso astuto, doce. E
vagou sempre no mundo peregrino,
amando e dormitando aqui e ali.

Era alegre e leviano, pois o peso
da vida só a minha mãe cabia.
Das mãos ele escapou-lhe qual balão.

"Não imites teu pai, é o que te almejo."
Mais tarde percebi o que então não via:
eram raças em antiga tensão.

Tradução de João Moura Jr.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

VÊNUS, CUPIDO E ADÔNIS


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Vênus, junto a cupido, descoberta por Adônis (1595), de Annibale Carracci

JUAN RAMÓN JIMÉNEZ


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Juan Ramón Jiménez


INTELIGÊNCIA, DÁ-ME O NOME EXATO DAS COISAS...

Inteligência, dá-me
o nome exato das coisas!
... Minha palavra seja
a própria coisa,
criada por minha alma novamente.

Que por mim cheguem todos
os que não as conhecem, às coisas;
que por mim cheguem todos,
os que já as esquecem, às coisas;
que por mim cheguem todos
os próprios que as amam, às coisas...
Inteligência, dá-me
o nome exato, e teu,
e seu, e meu, das coisas.

Tradução de José Bento

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

APOLO E MUSAS


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Apolo e duas Musas, de Pompeo Batoni

BORIS PASTERNAK


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Boris Pasternak


DEFINIÇÃO DE POESIA

Um risco maduro de assobio.
O trincar do gelo comprimido.
A noite, afolha sob o granizo.
Rouxinóis num dueto-desafio.

Um doce ervilhal abandonado
A dor do universo numa fava.
Fígaro: das estantes e flautas -
Geada no canteiro, tombado.

Tudo o que para a noite releva
Nas funduras da casa de banho,
Trazer para o jardim um estrela
Nas palmas úmidas, tiritando.

Mormaço: como pranchas na água,
Mais raso. Céu de bétulas, turvo.
Se dirá que as estrelas gargalham,
E no entanto o universo está surdo.

Tradução de Haroldo de Campos

domingo, 23 de novembro de 2008

ÁCIS E GALATÉIA

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Ácis e Galatéia se escondendo de Polifemo (1877), de Édouard Zier

MARGUERITE YOURCENAR


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Marguerite Yourcenar


RESPOSTAS

- Que tens para consolar a cova,
coração insolente, coração incontido?
O fruto maduro pende e sossobra.
Que tens para consolar a cova?
- Tenho o tesouro de ter sido.

Que tens para suportar a vida,
Coração doido, farto de pulsar?
Coração sem brilho e sem jaça.
Que tens para suportar a vida?
- Piedade de tudo o que passa.

Que tens para desprezar o mundo.
Coração duro, fácil de quebrar,
Que tens para desprezar o mundo,
Que tens mais que nós, mais fundo?
- Capaz de me desprezar.

Tradução de Mário Cesariny