Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

sábado, 27 de dezembro de 2008

JÚPITER, MERCÚRIO, FILEMON E BAUCIS

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Júpiter e Mercúrio hospedados por Filemon e Baucis (1678), de Johann Carl Loth

GEORG TRAKL


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Georg Trakl


AOS EMUDECIDOS

Oh, a loucura da cidade grande, quando ao entardecer
Árvores atrofiadas fitam inertes ao longo do muro negro
Que o espírito do mal observa com máscara prateada;
A luz, com açoite magnético, expulsa a noite pétrea.
Oh, o repicar perdido dos sinos da tarde.

A puta, em gélidos calafrios, pare uma criança morta.
A cólera de Deus chicoteia enfurecida a fronte do possesso,
Epidemia purpúrea, fome que despedaça olhos verdes.
Oh, o terrífico riso do ouro.

Mas quieta em caverna escura sangra muda a humanidade,
Constrói de duros metais a cabeça redentora.

Tradução de Cláudia Cavalcante

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

HÉRCULES

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Hércules em Repouso (1690), de Giovanni Gioseffo Dal Sole

FRANCIS PONGE

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Francis Ponge

O PEDAÇO DE CARNE

Cada pedaço de carne é uma espécie de fábrica, moinhos e lagares de sangue.
Tubulações, altos fornos, cubas vizinhos de martelos pilões, coxins de graxa.
O vapor jorra, fervente. Fogos sombrios ou claros encarnam-se.
Sarjetas a céu aberto carreiam escórias e fel.
E lentamente, à noite, à morte, todas essas coisas se resfriam.
Breve, se não a ferrugem, pelo menos outras reações químicas se produzem, liberando odores pestilenciais.

Tradução de Júlio Castañon Guimarães

BACO E ARIADNE

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Baco e Ariadne, de Tiziano Vecellio

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

WALT WHITMAN


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Walt Whitman, em gravura de Samuel Hollyer


CANTO DE MIM MESMO

Com a estrondosa música venho, com as minhas cornetas e tambores,
Não só toco marchas para os vencedores aclamados, também as toco para os conquistados e abatidos.

Ouviste dizer que foi bom vencer?
Também te digo que é bom perder, as batalhas perdem-se com o mesmo espírito com que se ganham.

Toco e volto a tocar pelos mortos,
Sopro por eles a minha mais alta e alegre melodia.

Vivas pelos vencidos!
E por aqueles cujos vasos de guerra afundaram no mar!
E pelos náufragos também!
E por todos os generais que perderam e por todos os vencidos heróis!
E pelos inumeráveis heróis desconhecidos iguais aos maiores heróis conhecidos!

Tradução de José Agostinho Baptista

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

DIANA, ENDIMIÃO E SÁTIRO

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Diana, Endimião e Sátiro, de Karl Brulloff

NUNO JÚDICE


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Nuno Júdice



METAFÍSICA

1


Não tenta nada de que se tivesse já esquecido;
o seu objectivo, agora, é organizar o presente.

2

Com as mãos, procura avaliar a qualidade da terra:
se as folhas lhe dão a consistência do ser vivo,
ou se a pedra que está por baixo, com os restos
fósseis da origem, rompe a sua unidade, e impede
o caminho às raízes.

3

Os olhos não sabem, ainda, que a visão profunda
os dispensa. Por dentro, o olhar implica a noite;
e é da fusão das formas no negro último do céu,
para além da superfície das estrelas e das nebulosas
que essa verdade brilha com a sua exacta eternidade.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

FEBO

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Febo em sua Carruagem, de Karl Brulloff

RUY BELO


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Ruy Belo


POEMA QUOTIDIANO

É tão depressa noite neste bairro
Nenhum outro porém senhor administrador
goza de tão eficiente serviço de sol
Ainda não há muito ele parecia
domiciliado e residente ao fim da rua
O senhor não calcula todo o dia
que festa de luz proporcionou a todos
Nunca vi e já tenho os meus anos
lavar a gente as mãos no sol como hoje
Donas de casa vieram encher de sol
cântaros alguidares e mais vasos domésticos
Nunca em tantos pés
assim humildemente brilhou
Orientou diz-se até os olhos das crianças
para a escola e pôs reflexos novos
nas míseras vidraças lá do fundo

Há quem diga que o sol foi longe demais
Algum dos pobres desta freguesia
apanhou-o na faca misturou-o no pão
Chegaram a tratá-lo por vizinho
Por este andar... Foi uma autêntica loucura
O astro-rei tornado acessível a todos
ele que ninguém habitualmente saudava
Sempre o mesmo indiferente
espectáculo de luz sobre os nossos cuidados
Íamos vínhamos entrávamos não víamos
aquela persistência rubra. Ousaria
alguém deixar um só daqueles raios
atravessar-lhe a vida iluminar-lhe as penas?

Mas hoje o sol
morreu como qualquer de nós
Ficou tão triste a gente destes sítios
Nunca foi tão depressa noite neste bairro

domingo, 21 de dezembro de 2008

SEREIAS

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Sereias (1883), de C.E. Boutibonne

JORGE FERNANDES

MEU POEMA PARNASIANO Nº 1

Que linda manhã parnasiana...
Que vontade de escrever versos metrificados
Contadinhos nos dedos...
Chamar de reserva todas as rimas
Em - or - para rimar com amor...
Todas as rimas em - ade - pra rimar com saudade...
Todas as rimas em - uz - pra rimar com Jesus, cruz, luz...

Enfeitar de flores de afeto um soneto ajustadinho
Todo trancado na sua chave de ouro...
Remexo os velhos livros...

“Ah! que saudades eu tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida...”

Zim... (ligaram um dínamo de milhares de cavalos
E as polias giram e as máquinas abafam o último verso da quadrinha...)

E lá me vem à mente o ritmo dos teares...
As grandes rimas dos padrões...
Os fios se cruzam... se unem pras grandes peças de linho...

- Óleos... fios... polcas... alavancas,
Apitos. Ponteadores. Carrités.
Zim traco! traco! traco! Malhos. Alicates. Ar comprimido.

Fuco! fuco! dos foles
Marcação de fardo pra exportação: marca M.B.C. - Fortaleza - M.F.M. - Mossoró - setas e contra marca -
Trepidação de decoviles.
“Ah! que saudades eu tenho.”

E me abafa o segundo verso de Casemiro
Um caminhão cheio de soldados que segue para o interior
A caçar bandidos.

Que linda manhã parnasiana!
Vou recitar “A vingança da porta”.
Os lindos e sangrentos versos do meu passado:
- “Era um hábito antigo que ele tinha..”
Pregões de gazeteiros: - Raide de San-Roman! Ribeiro de Barros
O grande momento da aviação mundial!
- Que poema forte o de San-Roman!
- Que poema batuta o de Ribeiro de Barros!
Todo misturado de nuvens, de óleo, gasolina,
De graxa, de gritos de bravos! de emoções!

Dem! dem! dem!: - o auto-socorro -
- Quem vem ali?
Um operário que quebrou uma perna de uma grande altura.
- Viva o grande operário! - Viva o grande herói do dia!
- Vivôôôôô!...