Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

sábado, 14 de fevereiro de 2009

LEDA

reprodução
Leda e o Cisne (1531-32), de Correggio (Antonio Allegri)

T.S. ELIOT

QUARTA-FEIRA DE CINZAS

I

Porque não mais espero retornar
Porque não espero
Porque não espero retornar
A este invejando-lhe o dom e àquele o seu projeto
Não mais me empenho no .empenho de tais coisas
(Por que abriria a velha águia suas asas?)
Por que lamentaria eu, afinal,
O esvaído poder do reino trivial?

Porque não mais espero conhecer
A vacilante glória da hora positiva
Porque não penso mais
Porque sei que nada saberei
Do único poder fugaz e verdadeiro
Porque não posso beber
Lá, onde as árvores florescem e as fontes rumorejam,
Pois lá nada retorna à sua forma

Porque sei que o tempo é sempre o tempo
E que o espaço é sempre o espaço apenas
E que o real somente o é dentro de um tempo
E apenas para o espaço que o contém
Alegro-me de serem as coisas o que são
E renuncio à face abençoada
E renuncio à voz
Porque esperar não posso mais
E assim me alegro, por ter de alguma coisa edificar
De que me possa depois rejubilar

E rogo a Deus que de nós se compadeça
E rogo a Deus porque esquecer desejo
Estas coisas que comigo por demais discuto
Por demais explico
Porque não mais espero retornar
Que estas palavras afinal respondam
Por tudo o que foi feito e que refeito não será
E que a sentença por demais não pese sobre nós

Porque estas asas de voar já se esqueceram
E no ar apenas são andrajos que se arqueiam
No ar agora cabalmente exíguo e seco
Mais exíguo e mais seco que o desejo
Ensinai-nos o desvelo e o menosprezo
Ensinai-nos a estar postos em sossego.

Rogai por nós pecadores agora e na hora de nossa morte
Rogai por nós agora e na hora de nossa morte.

II

Senhora, três leopardos brancos sob um zimbro
Ao frescor do dia repousavam, saciados
De meus braços meu coração meu fígado e do que havia
Na esfera oca do meu crânio. E disse Deus:
Viverão tais ossos? Tais ossos
Viverão? E o que pulsara outrora
Nos ossos (secos agora) disse num cicio:
~raças à bondade desta Dama
E à sua beleza, e porque ela
A meditar venera a Virgem,
É que em fulgor resplandecemos. E eu que estou aqui
dissimulado
Meus feitos ofereço ao esquecimento, e consagro meu amor
Aos herdeiros do deserto e aos frutos ressequidos.
Isto é o que preserva
Minhas vísceras a fonte de meus olhos e as partes indigestas
Que os leopardos rejeitaram. A Dama retirou-se
De branco vestida, orando, de branco vestida.
Que a brancura dos ossos resgate o esquecimento.
A vida os excluiu. Como esquecido fui
E preferi que o fosse, também quero esquecer
Assim contrito, absorto em devoção. E disse Deus:
Profetiza ao vento e ao vento apenas, pois somente
O vento escutará. E os ossos cantaram em uníssono
Com o estribilho dos grilos, sussurrando:

Senhora dos silêncios
Serena e aflita
Lacerada e indivisa
Rosa da memória
Rosa do oblívio
Exânime e instigante
Atormentada tranqüila
A única Rosa em que
Consiste agora o jardim
Onde todo amor termina
Extinto o tormento
Do amor insatisfeito
Da aflição maior ainda
Do amor já satisfeito
Fim da infinita
jornada sem termo
Conclusão de tudo
O que não finda
Fala sem palavra
E palavra sem fala
Louvemos a Mãe
Pelo Jardim
Onde todo amor termina.

Cantavam os ossos sob um zimbro, dispersos e alvadios,
Alegramo-nos de estar aqui dispersos,
Pois uns aos outros bem nenhum fazíamos,
Sob uma árvore ao frescor do ~a, com a bênção das areias,
Esquecendo uns aos outros e a nós próprios, reunidos
Na quietude do deserto. Eis a terra
Que dividireis conforme a sorte. E partilha ou comunhão
Não importam. Eis a terra. Nossa herança.

Tradução de Ivan Junqueira

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

NINFA E SÁTIROS

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Ninfa e Sátiros, de Sebastiano Ricci

DYLAN THOMAS


EM MEU OFÍCIO OU ARTE TACITURNA

Em meu ofício ou arte taciturna
Exercido na noite silenciosa
Quando somente a lua se enfurece
E os amantes jazem no leito
Com todas as suas mágoas nos braços,
Trabalho junto à luz que canta
Não por glória ou por pão
Nem por pompa ou tráfico de encantos
Nos palcos de marfim
Mas pelo mínimo salário
De seu mais secreto coração.

Escrevo estas páginas de espuma
Não para o homem orgulhoso
Que se afasta da lua enfurecida
Nem para os mortos de alta estirpe
Com seus salmos e rouxinóis,
Mas para os amantes, seus braços
Que enlaçam as dores dos séculos,
Que não me pagam nem me elogiam
E ignoram meu ofício ou minha arte.

Tradução de Ivan Junqueira

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

VÊNUS

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O Nascimento de Vênus (1863), de Alexandre Cabanel

ADALGISA NERY

reprodução
Adalgisa Nery

POESIA ENTRE O CAIS E O HOSPITAL

Geme no cais o navio cargueiro
No hospital ao lado, o homem enfermo.
O vento da noite recolhe gemidos
Une angústias do mundo ermo.
Maresia transborda do mar em cansaço,
Odor de remédios inunda o espaço.
Máquina e homem, ambos exaustos
Um, pela carga que pesa em seu bojo
Outro, na dor tomando o seu corpo.
Cais, hospital: Portos de espera
E começo de fim da longa viagem.
Chaminés de cargueiros gritando no mar,
Garganta do homem em gemidos no ar.
No fundo, o universo,
O mar infinito,
O céu infinito,
O espírito infinito.
Neblinados em tristezas e medos
Surgem silêncios entre os rochedos.
Chaminés de cargueiros gritando no mar
E a garganta do homem em gemidos no ar.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

SÍRINX

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Sírinx, de Arthur Hacker

T.S. ELIOT

BURNT NORTON

III

Este é um lugar de desafeição
O tempo antes e o tempo depois
Numa luz sombria: nem luz do dia
Investindo a forma de lúcida quietude
Transformando a sombra em efémera beleza
Com vagarosa rotação sugerindo permanência
Nem escuridão para purificar a alma
Esvaziando o sensual pela privação
Purificando a afeição do temporal.
Nem plenitude nem vazio. Apenas um tremeluzir
Sobre os rostos tensos devastados pelo tempo
Distraídos da distracção pela dístracção
Cheios de fantasias e vazios de sentido
Túmida apatia sem concentração
Homens e pedaços de papel remolnhando no vento frio
Que sopra antes e depois do tempo,
Vento que entra e sai de pulmões viciados
Tempo antes e tempo depois.
Eructação de almas doentias
No ar desbotado, os miasmas
Levados no vento que varre os sombrios montes de Londres,
Hampstead e Clerkenwell, Campden e Putney,
Hihgate, Primrose e Ludgate. Não aqui
Não aqui a escuridão, neste mundo de agitadas vozes.

Desce mais, desce apenas
Ao mundo da solidão perpétua,
Mundo não mundo, mas aquilo que não é mundo,
Escuridão interna, privação
E destituição de toda a propriedade,
Dissecação do mundo do sentido,
Evacuação do mundo da fantasia,
Inoperância do mundo do espírito;
Estee é um dos caminhos, e o outro
É o mesmo, não em movimento
Mas abstenção de movimento; enquanto o mundo se move
Em apetência, nos seus caminhos metalizados
Do tempo passado e do tempo futuro.

IV

O tempo e o sino enterraram o dia,
A nuvem negra arrebata o sol.
Irá voltar-se para nós o girassol, a clematite
Desprender-se, debruçar-se; irão a gavinha e a vergôntea
Unir-se e aderir?
Os frígidos
Dedos do teixo descerão
Para nos envolver? Depois da asa do alcião
Ter respondido à luz com a luz e calar-se, a luz está em repouso
No ponto morto do mundo em rotação.

V

As palavras movem-se, a música move-se
Apenas no tempo; mas o que apenas vive
Apenas pode morrer. As palavras, depois de ditas,
Alcançam o silêncio. Apenas pela forma, pelo molde,
Podem as palavras ou a música alcançar
O repouso, tal como uma jarra chinesa ainda
Se move perpetuamente no seu repouso.
Não o repouso do violino, enquanto a nota dura,
Não isso apenas, mas a coexistência,
Ou digamos que o fim precede o princípio,
E que o fim e o princípio estiveram sempre ali
Antes do princípio e depois do fim.
E tudo é sempre agora. As palavras deformam-se,
Estalam e quebram-se por vezes, sob o fardo,
Sob a tensão, escorregam, deslizam, perecem,
Definham com imprecisão, não se mantêm,
Não ficam em repouso. Vozes estridentes
Ralhando, troçando, ou apenas tagarelando,
Assaltam-nas sempre. O Verbo no deserto
É muito atacado por vozes de tentação,
A sombra que chora na dança funérea,
O clamoroso lamento da quimera desconsolada.

O detalhe do molde é movimento,
Como na figura dos dez degraus.
O próprio desejo é movimento
Não desejável em si;
O próprio amor é inamovível,
Apenas a causa e o fim do movimento,
Intemporal, e sem desejo
Exceto no aspecto do tempo
Capturado sob a forma de limitação
Entre o não ser e o ser.
De repente num raio de sol
Mesmo enquanto se move a poeira
Eleva-se o riso escondido
De crianças na folhagem
Depressa, aqui, agora, sempre-
Ridículo o triste tempo inútil
Que se estende antes e depois.

Tradução de Maria Amélia Neto

De Quatro Quartetos

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

JÚPITER E IO

reprodução
Júpiter e Io (1531-32), de Correggio (Antonio Allegri)

T.S. ELIOT

BURNT NORTON

I


O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
O que podia ter sido é uma abstracção
Permanecendo possibilidade perpétua
Apenas num mundo de especulação.
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Ao longo do corredor que não seguimos
Em direcção à porta que nunca abrimos
Para o roseiral. As minhas palavres ecoam
Assim, no teu espirito.
Mas para quê
Perturbar a poeira numa taça de folhas de rosa
Não sei.
Outros ecos
Habitam o jardim. Vamos segui-los?
Depressa, disse a ave, procura-os, procura-os,
Na volta do caminho. Através do primeiro portão,
No nosso primeiro mundo, seguiremos
O chamariz do tordo? No nosso primeiro mundo.
Ali estavam eles, dignos, invisiveis,
Movendo-se sem pressão, sobre as folhas mortas,
No calor do outono, através do ar vibrante,
E a ave chamou, em resposta à
Música não ouvida dissimulada nos arbustos,
E o olhar oculto cruzou o espaço, pois as rosas
Tinham o ar de flores que são olhadas.
Ali estavam como nossos convidados, recebidos e recebendo.
Assim nos movemos com eles, em cerimonioso cortejo,
Ao longo da alameda deserta, no círculo de buxo,
Para espreitar o lago vazio.
Lago seco, cimento seco, contornos castanhos,
E o lago encheu-se com água feita de luz do sol,
E os lótus elevaram-se, devagar, devagar,
A superfície cintilava no coração da luz,
E eles estavam atrás de nós, reflectidos no lago.
Depois uma nuvem passou, e o lago ficou vazio.
Vai, disse a ave, pois as folhas estavam cheias de crianças,
Escondendo-se excitadamente.. contendo o riso.
Vai, vai, vai, disse a ave: o género humano
Não pode suportar muita realidade.
O tempo passado e o tempo futuro
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.

II

Alhos e safiras na lama
Coagulam o eixo fixo.
O arame que vibra no sangue
Canta sob inventeradas cicatrizes
Apaziguando guerras há muito esquecidas.
A dança ao longo da artéria
A circulação da linfa
Estão representadas no rumo dos astros
Elevam-se ao verão na árvore
Nós movemo-nos acima da árvore em movimento
Na luz sobre a folha imaginada
E ouvimos no solo molhado
Lá em baixo, o cão de caça e o javali
Prosseguirem o seu ciclo como antes
Mas reconciliados no meio dos astros.

No ponto morto do mundo em rotação. Nem came nem
espírito;
Nem de nem para; no ponto morto, aí está a dança,
Mas nem paragem nem movimento. E não se chame a isso
fixidez,
Onde o passado e o futuro se reúnem. Nem movimento de
nem para,
Nem ascensâo nem declínio. Se não fosse o ponto, o ponto
morto,
Não haveria dança, e há só a dança.
Eu apenas posso dizer, estivemos ali: mas não posso dizer onde.
E não posso dizer por quanto tempo, pois seria situar isso no tempo.
A liberdade interior do desejo prático,
A libertação de acção e sofrimento, libertação da compulsão
Interior e exterior, e no entanto tendo à volta
Uma graça de sentido, uma luz branca em repouso e em movimento,
Erhebung sem movimento, concentração
Sem eliminação, ao mesmo tempo um novo mundo
E o velho tomado explícito, compreendida
No remate do seu êxtase parcial
A resolução do seu horror parcial.
Todavia o encadeamento de passado e futuro
Tecido na fraqueza do corpo em mutação
Protege a humanidade do céu e da danação
Que a carne não pode suportar.
O tempo passado e o tempo futuro
Apenas concedem um pouco de consciência.
Estar consciente é não estar no tempo
Mas apenas no tempo podem o momento no roseiral,
O momento no caramanchel onde a chuva batia,
O momento na igreja desabrigada ao entardecer
Ser lembrados; envolvidos em passado e futuro.
Apenas pelo tempo o tempo é conquistado.

Tradução de Maria Amélia Neto

De Quatro Quartetos

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

VÊNUS E SÁTIRO

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Vênus Embriagada por um Sátiro ou "La Nuda", de Annibale Carraci

AUGUSTO DOS ANJOS

VOLÚPIA IMORTAL

Cuidas que o genesíaco prazer,
Fome do átomo e eurítmico transporte
De todas as moléculas, aborte
Na hora em que a nossa carne apodrecer?!

Não! Essa luz radial, em que arde o Ser,
Para a perpetuação da Espécie forte,
Tragicamente, ainda depois da morte,
Dentro dos ossos, continua a arder!

Surdos destarte a apóstrofes e brados,
Os nossos esqueletos descamados,
Em convulsivas contorções sensuais,

Haurindo o gás sulfídrico das covas,
Com essa volúpia das ossadas novas
Hão de ainda se apertar cada vez mais!

domingo, 8 de fevereiro de 2009

DEJANIRA E O CENTAURO NESSO

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O Rapto de Dejanira (1620-21), de Guido Reni

KONSTANTINOS KAVÁFIS

À ESPERA DOS BÁRBAROS

O que esperamos na ágora reunidos?

É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?

É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?

É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.

Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?

É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?

É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloqüências.

Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?

Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.

Tradução de José Paulo Paes