Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

sábado, 21 de março de 2009

GREGO


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Vaso grego, 500-490 a.C., Louvre, Paris


CECÍLIA MEIRELES

CANÇÃO DE ALTA NOITE

Alta noite, lua quieta,
muros frios, praia rasa.

Andar, andar, que um poeta
não necessita de casa.

Acaba-se a última porta.
O resto é o chão do abandono.

Um poeta, na noite morta,
não necessita de sono.

Andar...Perder o seu passo
na noite, também perdida.

Um poeta, à mercê do espaço,
nem necessita de vida.

Andar... - enquanto consente
Deus que seja a noite andada.

Porque o poeta, indiferente,
anda por andar - somente.
Não necessita de nada.

sexta-feira, 20 de março de 2009

MUSA

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Musa afinando duas liras.
Detalhe do interior de taça Ática de fundo branco de Erétria.
Data 470-460 a.c. Museu do Louvre, Paris.

SEBASTIÃO ALBA


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Sebastião Alba


HÁ POETAS COM MUSA

Há poetas com musa. Muitos.
Eu, neste jardim do Éden,
a cargo do município,
onde um velho destece a sua vida
e, baixando o olhar,
ainda lhe afaga a trama,
quando a poesia se afoita,
amuo
na agrura de, ao acordar,
tê-la sonhado.

quinta-feira, 19 de março de 2009

CUPIDO

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Cupido, de Adolphe William Bouguereau

FERNANDO PESSOA

O GUARDADOR DE REBANHOS

VIII


Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas pelas estradas
Que vão em ranchos pela estradas
com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
"Se é que ele as criou, do que duvido" —
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansados de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
e eu levo-o ao colo para casa.
.............................................................................

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer nos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

......................................................................

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

.....................................................................

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

quarta-feira, 18 de março de 2009

ENDIMIÃO


reprodução

Endimião, de Briton Riviere

JORGE LUIS BORGES

POEMA DOS DONS

Quero dar graças ao Divino
Labirinto dos efeitos e das causas
Pela diversidade das criaturas
Que formam este singular universo,
Pela razão, que não cessará de sonhar
Com um plano do labirinto,
Pelo rosto de Helena e a perseverança de Ulisses,
Pelo amor que nos deixa ver os outros
Tal como os vê a divindade,
Pelo firme diamante e pela água solta,
Pela álgebra, palácio de precisos cristais,
Pelas místicas moedas de Ângelus Silesius,
Por Schopenhauer,
Que talvez tenha decifrado o universo,
Pelo fulgor do fogo
Que nenhum ser humano pode olhar sem
um assombro antigo,
Pela carnaúba, o cedro e o sândalo,
Pelo pão e pelo sal,
Pelo mistério da rosa,
Que prodiga cor e que não a vê,
Por certas vésperas e dias de 1955,
Pelos rijos tropeiros que na planura
Arreiam os animais e a aurora,
Pelas manhãs de Montevidéu,
Pela arte da amizade,
Pelo último dia de Sócrates,
Pelas palavras que num crepúsculo foram ditas
De uma cruz a outra cruz,
Por aquele sonho do Islã que abarcou
Mil noites e uma noite,
Por aquele outro sonho do inferno,
Da torre do fogo que purifica
E das estrelas gloriosas,
Por Swedenborg,
Que conversava com os anjos nas ruas de Londres,
Pelos rios secretos e imemoriais
Que convergem em mim,
Pelo idioma que, faz séculos, falei
na Nortúmbria,
Pela espada e pela harpa dos saxões,
Pelo mar, que é um deserto resplandecente
E um número de coisas que não sabemos,
Pela música verbal da Inglaterra,
Pela música verbal da Alemanha,
Pelo ouro, que resplende nos versos,
Pelo épico inverno,
Pelo título de um livro que não li: 'Gesta Dei per Francos',
Por Verlaine, inocente como os pássaros,
Pelo prisma de cristal e o pêndulo de bronze,
Pelas listras do tigre,
Pelas altas torres de São Francisco e da Ilha de Manhattan,
Pela manhã no Texas,
Por aquele sevilhano que redigiu a Epístola Moral
E cujo nome, como ele teria preferido, ignoramos,
Por Sêneca e Lucano, de Córdoba,
Que antes do espanhol escreveram
Toda a literatura espanhola,
Pelo jogo de xadrez, geométrico e bizarro,
Pela tartaruga de Zenão e o mapa de Royce,
Pelo cheiro medicinal dos eucaliptos,
Pela linguagem, que pode simular a sapiência,
Pelo esquecimento, que anula ou modifica o passado,
Pelo hábito,
Que nos repete e confirma como um espelho,
Pela manhã, que nos depara a ilusão de um começo,
Pela noite, sua treva e sua astronomia,
Pela coragem e a felicidade dos outros,
Pela pátria, percebida nos jasmins
Ou numa espada velha,
Por Whitman e Francisco de Assis, que já escreveram o poema,
Pelo fato de que o poema é inesgotável
E se confunde com a soma das criaturas
E não chegará jamais ao último verso
E varia como os homens,
Por Frances Haslam, que pediu perdão a seus filhos
Por morrer tão devagar,
Pelos minutos que precedem o sono,
Pelo sono e a morte,
Esses dois tesouros ocultos,
Pelos íntimos dons que não enumero,
Pela música, misteriosa forma do tempo.

Tradução de Paulo Mendes Campos

terça-feira, 17 de março de 2009

FLORA

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Triunfo de Flora (1743-1744), de Giovanni Battista Tiepolo

GIUSEPPE UNGARETTI

VIGÍLIA

Uma noite inteira
atirado ao lado
de um camarada
massacrado
com a sua boca
desgrenhada
voltada à lua-cheia

com a congestão
das suas mãos
penetrada
no meu silêncio
escrevi
cartas plenas de amor

Nunca me senti
tão
preso à vida.

Tradução de Jorge de Sena

segunda-feira, 16 de março de 2009

CIRCE


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Circe e os Amigos de Ulisses, de Briton Riviere

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

A MÁQUINA DO MUNDO

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

domingo, 15 de março de 2009

ODISSEU E CALIPSO



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Odisseu e Calipso (1883), de Arnold Böcklin


WALLACE STEVENS

TREZE MANEIRAS DE OLHAR UM MELRO

I

Em vinte montanhas nevadas
Só uma coisa se movia:
O olho do melro.

II

Eu estava entre três opções,
Como árvore
Em que pousaram três melros.

III

O melro girava no vento outonal.
Era um figurante na pantomina.

IV

Um homem mais uma mulher
Dá um.
Um homem mais uma mulher mais um melro
Dá um.

V

Não sei se prefiro
A beleza das inflexões
Ou a das insinuações,
O assovio do melro
Ou o instante depois.

VI

O gelo cobria a longa janela
Com bárbaros cristais.
A sombra do melro
Cruzava de lá para cá.
E na sombra
Desenhou-se
Uma causa indecifrável.

VII

Ó homem magro de Haddam,
Por que sonhais com aves douradas?
Acaso não vedes o melro
A caminhar por entre os pés
Das mulheres que vos cercam?

VIII

Sei de nobres canções
E ritmos lúcidos, irressistíveis;
Mas sei também
Que o melro tem a ver
Com o que sei.

IX

Quando voou além de onde a vista alcança
O melro demarcou o limite
De um de muitos círculos.

X

Ao ver melros voando
Numa luz esverdeada,
Mesmo os cáftens da eufonia
Exclamariam espantados.

XI

Ele atravessava Connecticut
Num tilburi de vidro.
Certa vez teve medo:
Por um instante pensou
Que a sombra da carruagem
Eram melros.

XII

O rio está correndo.
O melro deve estar voando.

XIII

Era noite, a tarde toda.
Nevava
E ia nevar.
E o melro imóvel
Num galho de cedro.

Tradução de Paulo Henriques Britto