Um caderno de leituras

"esguias Graças, Musas de mais magas tranças,
vinde, vinde agora"

Safo

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

D. H. LAWRENCE

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D. H. Lawrence

COBRA

Uma cobra veio à minha cisterna
Num dia escaldante, e eu em pijama por causa do calor,
Beber água.

Desci as escadas de jarro na mão
Na sombra funda e estranho odor de grande alfarrobeira negra
E tive de ficar à espera, tive de ficar à espera ali em pé, pois lá estava ela na cisterna antes de mim.
Entrou vinda de uma fenda na parte escura do muro de terra
E desceu, arrastando a frouxidão amarelo-castanha do seu ventre mole sobre o bordo da cisterna de pedra,
E apoiou a garganta no fundo de pedra
E, onde a água gotejara da torneira, numa pequena pureza,
Sorveu com a boca reta,
Bebeu suavemente a água que penetrou por entre as gengivas retas no longo corpo mole,
Silenciosamente.

Alguém chegara à cisterna antes de mim,
E eu, como quem chega em segundo lugar, à espera.

Deixou de beber e ergueu a cabeça como faz o gado,
E olhou-me vagamente como faz o gado ao beber,
E fez vibrar a língua bífida de entre os lábios e cismou um instante,
E curvou-se e bebeu um pouco mais,
Um ser castanho-de-terra, dourado-de-terra, vindo das entranhas ardentes da terra,
No dia de Julho siciliano, com o Etna a fumegar.

A voz da minha educação disse-me:
É preciso matá-la,
Pois na Sicília as cobras pretas são inocentes, as douradas, venenosas.

E vozes em mim disseram: se és homem,
Pega num pau e esmaga-a já, acaba com ela.

Mas devo eu confessar como gostei dela?
Como estava contente por ter vindo, qual hóspede tranquilo, beber na minha cisterna
E partir pacífico, apaziguado e sem agradecimentos
Para as entranhas ardentes da terra?
Foi por cobardia que não ousei matá-la?
Foi por perversidade que ansiei falar-lhe?
Foi por humildade que me senti honrado?
E senti-me tão honrado.

E, contudo, aquelas vozes:
Se não tivesses medo, matá-la-ias!

E era verdade, tinha medo, muito medo,
Mas mais ainda me sentia honrado
Por ela ter buscado a minha hospitalidade,
Vinda da porta negra da secreta terra.

Bebeu o que quis
E ergueu a cabeça, sonhadoramente, como quem bebeu,
E fez vibrar a língua como uma noite bífida no ar, tão preta,
Parecendo lamber os lábios,
E olhou à volta para o ar, sem ver, como um deus,
E devagar virou a cabeça,
E devagar, muito devagar, como que três vezes mais em sonho,
Pôs-se a arrastar a lenta linha longa do corpo em curva
E a trepar a rampa em ruínas do meu talude.

E, ao introduzir a cabeça naquele buraco horrível,
Ao içar-se lentamente, ajustando os ombros de cobra e entrando mais,
Uma espécie de horror, uma espécie de protesto contra aquela fuga para o horrendo buraco preto,
Aquele penetra deliberado na escuridão, aquele arrastar-se lento para lá,
Apossou-se de mim, agora que ela estava de costas.

Olhei à volta, pousei o jarro,
Peguei num pau desajeitado
E atirei-o com estrépito à cisterna.
Penso que não lhe acertou,
Mas, de súbito, a parte dela que ainda não entrara contorceu-se
Em pressa pouco digna,
Vibrou como um relâmpago e desapareceu

No buraco preto, a fenda de lábios de terra no meu muro
Que eu fiquei fitando fascinado na intensa calma do meio-dia.

Arrependi-me logo.
E pensei: que ato torpe, grosseiro e desprezível!
Odiei-me e às vozes da minha maldita educação humana.

E pensei no albatroz,
E desejei que regressasse, a minha cobra.

Pois de novo me aparecia como um rei,
Como um rei em exílio, deposto no submundo
E que há-de outra vez ser coroado.

E assim perdi a oportunidade com um dos senhores
Da vida.
E tenho algo a expiar;
Uma mesquinhez.

Tradução de Herberto Helder

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